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André Luiz | interior. Viveremos, de fato, com as criações mais intimas de nossa alma. Reparando -me a dificuldade para compreender de pronto, Aniceto prosseguiu, depois de pequeno intervalo: – Para melhor elucidação, recordemos a crucificação d o Mestre Divino. Sabemos que Jesus penetrou na glória sublime logo após a suprema dor do Calvário; entretanto, estamos ainda a vê -lo frequen temente pendurado na cruz, martirizado pelos nossos erros, flagelado pelos nossos açoites, porque a visão interior a isso nos compele . A condenação do Mestre foi um crime coletivo e esse crime estará conosco até ao dia em que nos vestirmos na divina luz da redenção. O esclarecimento não poderia ser mais lúcido. Sentia -me diante de nobre revelação. – O dever possui as bênçãos da confianç a, mas a dívida tem os fantasmas da cobrança – tornou o generoso mentor, com grave acento. Readquirindo a serenidade, interroguei: – Mas Paulo veio ter casualmente a este Posto? – Não – respondeu Aniceto, atencioso –; foi trazido pelo próprio Alfredo, que se sentiu necessitado de disciplinar o coração. Nosso amigo, que hoje dirige esta casa de amor, desprendeu -se do mundo, sob intensa vibração de ódio e desesperação. Sofreu muitís simo nos primeiros tempos, embora nunca fosse abandonado pela dedicação da abnegada companheira. Alfredo, todavia, não pôde ver Ismália enquanto não se desvencilhou das baixas manifestações do rancor. Socorrido em “Campo da Paz”, compreendeu as próprias ne cessidades. Tão logo adquiriu algum mérito, intercedeu pelo amigo infiel, buscou -o em recanto abismal, e tão nobremente se dedicou ao aperfeiçoamento de si mesmo, que conquistou a posição de administrador de um Posto de Socorro. Trouxe o tutelado em sua companhia e trata -o como irmão, atualmente. Não julguem que o marido de Ismália conseguiu essa vitória espiritual tão somente pelo fato de desejá -la. Ele desejou -a, procurou -a, alimentou -a e, agora, permanece na realização. Há muitos anos conversa com Paulo, diariamente. Nos primeiros tempos, aproximava -se do enfermo, como necessitado de reconciliação; depois, como pessoa caridosa; mais tarde adquiriu entendimento, comparando situações; em seguida, sentiu piedade; logo após, experimentou simpatia e, presentemente, conquistou a verdadeira fraternidade, o amor sublime de irmão pelo ex -inimigo. Fazendo pequena pausa, voltou a dizer, espirituosamente: – Como v eem , o ensinamento de Jesus, quanto ao “batei e abrir -se-vos-á”, muito extenso. No plano da carne, insistimos à porta das coisas exteriores, procurando facilidades e vantage ns; mas, aqui, temos de bater à porta de nós mesmos, para encontrar a virtude e a verdadeira iluminação. Vicente, que até então se conservara calado, indagou: – Paulo, todavia, permanecerá aqui, indefinidamente? Nosso instrutor fez um gesto significativo e c oncluiu: – Voltará breve à Terra. Ismália tem feito a seu favor inúmeras intercessões e não deseja que ele, ao retomar a razão plena, se sinta humilhado, |
André Luiz | com o beneficio das próprias vítimas. Uma das irmãs, por ele caluniada no mundo, já voltou ao círculo carnal, e a abnegada esposa de Alfredo pediu -lhe que recebesse Paulo como filho, tão logo seja oportuno. |
André Luiz | Vida social À noite, surpreendia m-me os sublimes aspectos do firmamento no Posto de Socorro. O luar safirino envolvia todas as coisas. O céu era qual infinita colcha de azul muito límpido, pontilhado de astros fulgurantes. As nuvens da tarde haviam desaparecido. Contemplando a beleza da noite, Alfredo acentuou: – Felizmente, os fenômenos magnéticos foram deslocados do nosso circulo. Os aparelhos, porém, continuam registrando enorme conflito de forças inferiores. Ia comentar a beleza do céu, ante a observação do administrador, quando a campainha retiniu suavemente. Chamavam à entrada. Alfredo e Ismália sorriram. Muito gentil, o chefe do Posto asseve rou: – Temos a visita de amigos do “Campo da Paz”. E, convidando -nos à recepção no baluarte avançado, acrescentou jovialmente: – Temos, também, aqui, a nossa vida social. Como não? É preciso saber viver. Encantado com essa nota alegre, acompanhei os donos da casa, verificando, com indizível surpresa, que tínhamos sob os olhos um belo carro tirado por dois soberbos cavalos brancos. Tratava -se de veículo confortável e interessante, quase idêntico aos velhos carros de serviço público, d o tempo de Luis XV , que eu vira, mais de uma vez, em publicações antigas. Nele chegara pequena família da colônia próxima, que, pelas informações de Aniceto, demorava a três léguas do Posto, aproximadamente. Alfredo apresentou -nos, cavalheirescamente, com exceção de nosso orienta dor, que era velho amigo dos recém -chegados. Constituía m-se os visitantes do casal Bacelar e duas filhas jovens. O chefe do grupo mostrava idade avançada, revelando, porém, excelentes disposições. A senhora dava impressão de madureza, aparentando, contudo, maravilhosa vivacidade, assim como as duas moças. A alegria era enorme. Não se observava qualquer nota de convencionalismo menos digno, como na Terra, Os gestos de cada um, a simplicidade, a despreocupação e as frases afetuosas demonstravam sinceridade pu ra. Permanecíamos num quadro social inacessível ao fingimento. |
André Luiz | Voltando ao interior doméstico, entre grandes manifestações de júbilo familiar, observei que os recém -chegados eram amigos de muito tempo, que vinham ao encontro de Ismália. A nobre senhora par eceu -me contentíssima. Expediu recados afetuosos para algumas famílias do Posto e, em breves minutos, o castelo recebia inúmeras pessoas que concorriam ao brilhantismo da seleta reunião. Sentindo -me assaz insignificante, ao lado dos novos amigos, limitava -me a ouvir e observar. Logo aos primeiros instantes de conversação particularizada, ouvi Aniceto perguntar ao senhor Bacelar: – Como corre o serviço? O velho bondoso respondeu num sorriso largo: – Bem, sempre bem. Apenas não podemos fixar demasiada atenção nos companheiros encarnados. E ajuntou com graça: – É indispensável aprender a servir e passar. Nosso instrutor sorriu igualmente e observou: – Compreendo, compreendo. Aliás, o progresso humano não é uma questão de dias. Não tenhamos ilusões. E, percebend o que Vicente e eu poderíamos aproveitar com a palestra, Aniceto indicou o novo hóspede de Alfredo, explicando solícito: – Nosso amigo Bacelar é chefe de turmas de assistência aos nossos irmãos do círculo carnal. Tem longa experiência dos homens e conhece -os como ninguém. Há muito que aproveitar nas suas observações. – Não tanto, meus caros – exclamou o senhor Bacelar, de bom humor – não tanto. Sou simples companheiro de vocês, cumprindo deveres por acréscimo da misericórdia divina. Não posso fazer muito, e m razão de minhas eficiências naturais. – Estamos certos do grande proveito da sua palavra – objetou Vicente, até então calado. – Tudo o que nos disser sobre o problema de assistência constituirá, para nós, ensinamento precioso – disse por minha vez. O no vo amigo fitou -nos com inteligência, e perguntou: – Foram médicos no mundo? – Sim – respondemos a um só tempo. O senhor Bacelar pensou alguns momentos e acentuou: – Sempre gostei de conversar com os amigos, recorrendo aos símbolos sugeridos pela profissão que exercem. Mas, no tocante às minhas atividades, não teria muito o que dizer a médicos militantes. – Pelo contrário – aduzi –, seus esclarecimentos enriquecerão nossas experiências. O interlocutor sorriu, otimista, e declarou: – Não creia. Recorde os seu s doentes comuns. Muito raramente lembram a medicina preventiva. De modo quase invariável, esperam a positivação das moléstias para buscarem o recurso preciso. Necessitam de anestésicos para o socorro do bisturi. Fogem ao regime tão logo surja a |
André Luiz | primeira m elhora. Confundem o método de tratamento, apenas se registre o primeiro sinal de cura. Detestam a dor que restabelece o equilíbrio. Descontenta m-se com a indicação de purgativos. Preferem a medicação de sabor agradável. E, sobretudo, quase sempre querem sa ber muito mais que os médicos. Esta síntese aplicável a corpos doentes representa, em nosso campo de serviço, o resumo do programa de assistência aos Espíritos enfermos, encarnados na Terra, e com agravantes de vulto, porque, em nosso setor, não podemos ma nipular a alma, à maneira do cirurgião que opera as amídalas. Somos forçados à preparação do campo mental conveniente, a proceder à semeadura de pensamentos novos, velar pela germinação, ajudar os rebentos minúsculos e aguardar a obra do tempo. Nossa luta não é simples, porque, se o clínico do mundo encontra sempre familiares amorosos, dispostos a cooperar com ele em benefício do doente, o que encontramos, por nossa vez, são enormes legiões de elementos adversos à nossa atividade restauradora e curativa. Em geral, o médico do mundo presta socorro a quem deseja recebê -lo, pelo menos nas ocasiões de graves perigos; nós, porém, meus amigos, muitas vezes temos de prestar assistência aos que não a desejam, por viverem sob véus de profunda ignorância. – Tem razão – murmurei, ouvindo comparações tão lógicas –; entretanto, vale po r conforto a certeza de que há muitos cooperadores encarnados no mundo prontos a colaborar na tarefa. O senhor Bacelar teve uma expressão fisionômica muito significativa, e revelou: – Nem sempre. A cooperação é outro problema. A maioria dos irmãos que se p ropõem ao serviço, partem daqui prometendo, mas gostam de viver descansados, no planeta. Poucos fogem ao estalão comum. Raramente encontramos companheiros encarnados com bastante disposição para amar o trabalho pelo trabalho, sem id eia de recompensa. A mai oria está procurando remuneração imediata. Nessas condições, não percebem que a mente lhes fica como aposento escuro, atulhado de elementos inúteis. À força de viciarem raciocínios, confundem igualmente a visão. Enxergam tormentas onde há paisagens celeste s, montanhas de pedra onde o caminho é gloriosa elevação. De pequenos enganos a pequenos enganos, formam o continente das grandes fantasias. Daí por diante, a recapitulação das experiências terrenas inclina -os, mais fortemente, para a exigência animal e, c hegados a esse ponto, raros voltam ao dever sagrado, para considerar a grandeza das divinas bênçãos. Nosso interlocutor fez uma pausa e tornou: – E o “desculpismo”? Nesse terreno de assistência espiritual, verão, um dia, quantos pretextos são inventados pe las criaturas terrestres por fugir ao testemunho da verdade divina, nas tarefas que lhes são próprias. Os mordomos da responsabilidade alegam excesso de deveres, os servidores da obediência afirmam ausência de ensejo. Os que guardam possibilidades financei ras montam guarda ao patrimônio amoedado, os que receberam a bênção da pobreza de recursos monetários aconselha m-se com a revolta. Os moços declara m-se muito jovens para cultivar as realidades sublimes, os mais idosos |
André Luiz | afirma m-se inúteis para servi -las. Os casados reclamam quanto à família, os solteiros queixa m-se da ausência dela. Dizem os doentes que não podem, comentam os sãos que não precisam. Raros companheiros encarnados conseguem viver sem a contradição. O senhor Bacelar parecia disposto a prosseguir, mas as duas jovens foram buscá -lo, a ele e Aniceto, em nome de Alfredo, a fim de providenciar solução de problema intimo que lhes dizia respeito. |
André Luiz | Notícias interessantes Em vista de apresentação mais íntima de Aniceto, que deixara as jovens em nossa companhia, entramos a conversar animadamente com Cecília e Aldonina. A primeira tinha sido filha dos Bacelar, quando na Crosta; a segunda era uma sobrinha do chefe da família, que aguardava a volta da mãezinha para a organização de um lar na cidade próxima. Ambas demonstravam magnífico desenvolvimento mental, robusta inteligê ncia e notável capacidade de expressão. E, enquanto os nossos maiores se conservavam afastados, cogitando de assunto privado, Vicente e eu ouvíamos as jovens, encantados com a sua nobreza e vivacidade. Verificava que o quadro era idêntico à paisagem social da Terra, apenas diferindo quanto aos sentimentos reais. Não havia qualquer nota de falsa apresentação. Em tudo a alegria pura, a simplicidade fiel, a sinceridade sem mácula. No desenvolvimento espontâneo da palestra, falou Cecília, com graça: – Estou tra balhando, há muito, para alcançar um prêmio de visita a “Nosso Lar”. Minhas superioras prometera m-me semelhante satisfação para o ano próximo... E, sorrindo, rematou expressivamente: – Entretanto, para consegui -lo, tenho de atender a umas tantas obrigações importantes. – Pois que! – perguntou Vicente, admirado – é preciso tanto? – Sem dúvida – tornou a jovem, bem humorada – o meu amigo talvez não esteja convencido, quanto ao brilho de sua atual posição. Viver em “Nosso Lar” é uma grande bênção. Acaso não o terá compreendido ainda? Sorrimos todos. E, reafirmando o conceito, Cecília continuou: – Segundo os instrutores que nos visitam em “Campo da Paz”, os seus Ministérios são verdadeiras universidades de preparação espiritual. O ensejo educativo, neles, é imen so. E chego a crer que, para avaliarem a extensão da benesse que Jesus lhes concedeu, seria necessário viverem alguns anos em nossa colônia, onde o trabalho ativo de vigilância, e assistência é mais imperioso, mais exigente. – Em “Nosso Lar”, porém – objet ei –, temos igualmente grande número de sofredores. A Regeneração é uma colm eia de milhares. |
André Luiz | A interlocutora, todavia, revelando profunda acuidade nas observações, considerou: – Você diz muito bem, quando se refere a colm eia, significando possibilidades de trabalho. Creia que os sofredores que atingem o seu núcleo já se encontram a caminho de excelentes realizações. Naturalmente que os irmãos desequilibrados, que por lá existem, já se torturam pelo vagaroso despertar da consciência, já sentem remorsos e arr ependimentos indicativos de renovação. São sofredores que melhoram progressivamente, porque o ambiente da cidade é de elevação positiva. Onde a maioria vive com a bondade, a maldade da minoria tende sempre a desaparecer. “Nosso Lar”, portanto, mesmo para o s que choram, possui soberanas vantagens espirituais. Impressionado com o que ouvia, lembrei: – Eu mesmo trabalhei algum tempo, em cooperação, nas câmaras retificadoras. – Já ouvi diversas referências a essa instituição – exclamou Cecília, senhora do assun to –, mas, baseando -me nos informes de mentores amigos, continuo a manter minha opinião. E, como se já conhecesse nossos processos de serviço, asseverou, sorridente: – Vocês conhecem lá muitos Espíritos sofredores, mas, em “Campo da Paz”, conhecemos muitos Espíritos obsessores. Lá poderá existir muita gente que ainda chora; mas em nosso meio há muita gente que se revolta. É mais fácil remediar o que geme, que atender ao revoltado. Nas câmaras a que se refere, vocês retificam erros que já apareceram, dores que já se manifestaram; mas aqui, meu amigo, somos compeli dos a lutar com irmãos ignorantes e perversos, que se sentem absolutamente certos nas fantasias perigosas que esposaram, e vemo -nos obrigados a atender a doentes que não acreditam na própria enfermidade. Começava a entender a lógica daquela argumentação e, reconhecendo a impossibilidade de qualquer contradita, a jovem continuou, segura de si: – Aliás, é natural que assim seja. Estamos a pouca distância dos homens, nossos irmãos na carne. E sabemos que, na Crosta, a situação não é diferente. Quantos material istas se fantasiam, por lá, de filósofos? Quantos demônios com capa de santos? Quanta má fé a fingir generosidade e boas intenções? A influência da Humanidade encarnada em nosso núcleo de serviço é vigorosa e inevitável. Vicente, que ouvia atencioso, obtem perou: – Deduzo de tudo isso manifestações sacrificiais muito grandes, mas o trabalho em “Campo da Paz” deve ser altamente meritório. – Incontestavelmente – respondeu a jovem. – A história da fundação é interessante. Alguns benfeitores, reconhecidos a Jesu s, resolveram organizar, em nome dele, uma colônia em plena região inferior, que funcionasse como instituto de socorro imediato aos que são surpreendidos na Crosta com a morte física, em estado de ignorância ou de culpas dolorosas. O projeto mereceu a bênç ão do Senhor e o núcleo se criou, há mais de dois séculos. Nem todos os |
André Luiz | Espíritos evolvidos, no entanto, estimam o serviço nesse órgão de assistência constante. A maioria dos missionários vitoriosos, ao se ausentarem da Terra, necessitam refazer energias, por direito natural do trabalhador fiel, e os mentores de nobre posição hierárquica têm seus programas de serviços, que não devem quebrar, em obediência aos desígnios do Senhor. Desse modo, nosso serviço é ativo, mas nossas aquisições são lentas e devemos sempre esperar por cooperadores que se eduquem na própria colônia, em benefício geral. Ganha -se excelente compensação, temos direito a grandes valores intercessórios, mas, por isso mesmo, nossas responsabilidades não são pequenas. Conhecendo a utilidade do s que servem em nossa colônia, não passamos nunca sem instrutores abnegados, que procedem da zona superior, alentando -nos o bom ânimo, O que pedimos, com fundamentação legítima, nunca é negado; e, se tarda o recurso, beneméritos orientadores de nossas ativ idades prestam explicações que nos libertam de qualquer angústia na espera. Por isso, nosso grupo está sempre coeso e muitos preferem adiar certas realizações sublimes, para permanecer ao lado de companheiros antigos, aos quais se unem com desvelado amor. Os esclarecimentos da jovem encantava m-me. Naquelas poucas palavras estava todo um resumo de lições sobre o sacrifício e o merecimento, o compromisso fraterno e a solidariedade compensadora. – A sua família sempre viveu lá? – perguntei com interesse. A jov em sorriu e explicou: – Meu pai, há mais de cinq uenta anos, foi socorrido pelos benfeitores de “Campo da Paz” e, restabelecida a saúde espiritual, fixou -se na colônia, com razoável impulso de amizade e gratidão. Mais tarde, minha mãe reuniu -se a ele e, faz precisamente vinte anos, Aldonina e eu fomos atraídas amorosamente por ambos, a fim de continuarmos, ali, no santuário familiar. Desse modo, trabalhamos ao lado deles, desde a primeira hora. – E tem muitos programas para o futuro? – indaguei. Cecília fez um gesto que lhe caracterizava o coração de moça sonhadora, e redarg uiu: – Tenho muitos projetos e problemas a resolver, mas estou aguardando a chegada de alguém que ainda se encontra na Terra. |
André Luiz | Em palestra afetuosa Voltávamo -nos em conversação amiga para as belezas de “Nosso Lar”, quando Aldonina interveio, acrescentando: – Alguns membros de nossa família visitam a cidade de vocês, de tempos a tempos. Nossa irmã Isaura, que se casou em “Campo da Paz”, há três anos, lá reside em companhia do esposo, q ue é funcionário dos Serviços de Investigação do Ministério do Esclarecimento. Percebendo -nos a curiosidade, prosseguiu: – Morava ele conosco, mas, desde muito tempo, foi convocado a serviços por lá, vindo, mais tarde, buscar a noiva. Vicente, que se manti nha em atitude expectante, exclamou: – Tocamos num assunto que muita admiração me tem despertado, desde que regressei dos círculos terrenos. Não tinha, no mundo, a menor id eia de que pudéssemos cogitar de uniões matrimoniais, depois da morte do corpo. Quan do assisti a festividades dessa natureza, em “Nosso Lar”, confesso que minha surpresa raiou pela estupefação. Cecília, vivaz, acentuou, sorrindo: – Isto se deu também conosco. Entretanto, é forçoso reconhecer que tal estado d'alma resulta do exclusivismo p ernicioso a que nos entregamos no plano carnal, porque, se o casamento humano é um dos mais belos atos da existência na Terra, porque deixaria de existir aqui, onde a beleza é sempre mais quintessenciada e mais pura? E, além do mais, é imprescindível ponde rar que não vivemos à revelia de leis sábias e justas. – E como são felizes os que se casam em nossos planos! – acentuou o companheiro, denotando aspirações secretas do coração. Aldonina esboçou um gesto expressivo e considerou: – Sim, para possuirmos aqui essa ventura, é preciso ter amado na Terra, movimentando os mais nobres impulsos do espírito. Para colher os júbilos dessa natureza, é necessário ter amado com alma. Os que se consagram exclusivamente aos desejos do corpo, não sabem amar além da forma, sã o incapazes de sentir as profundas vibrações espirituais do amor sem morte. Desejando, porém, retomar o assunto referente a Isaura, interroguei, curioso: – Continuem falando -nos da irmã que se mudou para “Nosso Lar”. |
André Luiz | Estimaria saber como se realizou o cons órcio. Se você, Cecília, está aguardando um prêmio de visita à nossa cidade, como se casou ela, transferindo -se para lá definitivamente? Cecília sorriu e retrucou: – Isto é outro caso. Isaura não poderia correr atrás do noivo, porque estava em situação inf erior à dele, mas Antônio, como superior, poderia descer a buscá -la. Não creiam, porém, que o matrimônio se tenha verificado sem qualquer preparação ou exigência. O noivo poderia conduzi -la sem qualquer formalidade, desde que recebesse o devido consentimen to, porquanto obtivera permissão das autoridades de “Nosso Lar”, mas um dos chefes de serviço aconselhou a Isaura, nesse sentido, explicando -lhe que, como administrador de uma colônia em condições de inferioridade, não podia opor qualquer embargo, mas pedi a à noiva preparar -se, por seis anos sucessivos, em “Campo da Paz”, antes da partida definitiva, acrescentando sensatamente que, num casamento de almas, é indispensável apurar o enxoval dos sentimentos. Nossa irmã, que foi sempre muito prudente, aceitou a solicitação e trabalhou durante todo esse tempo em nossa colônia, adquirindo valores culturais e aprimorando o campo do pensamento. Recebia essas delicadas informações, sem disfarçar a enorme surpresa. – Já fui visitar o casal, uma vez – disse Aldonina, ho nrada –, quando ganhei o prêmio de assiduidade e bom ânimo. Estive em “Nosso Lar”, durante uma quinzena inesquecível para mim; no entanto, embora visitasse sublimes instituições como o Bosque das Águas, o Salão da Arte Divina, o Campo da Prece Augusta, reconheço ter voltado muito longe de um conhecimento integral da enorme cidade. Lá irei, contudo, mais tarde, pois continuo em meu trabalho e nossos instrutores afirmam sempre que tudo de bom deve aguardar do destino quem saiba servir ao bem e trabalhar com e sperança. Admirando a beleza de sentimentos daquelas jovens, indaguei emocionado: – Mas não têm vocês, em “Campo da Paz”, instituições semelhantes? Não existirão, por lá, templos de alegria abertos à juventude? – Ah! Sim – murmurou Cecília como quem não de sejava ser ingrata às Bênçãos do Eterno –, muito nos dá o Senhor, em nossa colônia; entretanto, permanecemos na vizinhança dos irmãos encarnados – As tempestades que nos atingem, obriga m-nos a serviços constantes. Os quadros interiores que nos cercam são p rofundamente dolorosos. Nossa cidade não possui Ministérios da União Divina, nem da Elevação. Não podemos receber a influência superior com muita facilidade. Nossos trabalhos de comunicação e auxílio necessitam ainda de muita gente educada no Evangelho, pa ra funcionar com eficiência. Além disso, temos os problemas de finalidade. Nossa colônia foi instituída para socorro urgente. A nosso ver, “Campo da Paz” é, mais que tudo, um avançado centro de enfermagem, rodeado de perigos, porque os irmãos ignorantes e infelizes nos cercam o esforço por todos os lados. De dez em dez quilômetros, nas zonas de nossa vizinhança, há Postos de Socorro como este, que funcionam como instituições de assistência fraternal e sentinelas ativas, ao mesmo tempo. |
André Luiz | A jovem fez uma pausa mais longa, observando o efeito de suas palavras, e rematou: – Nosso governador, quando se agravam os serviços, costuma asseverar que estamos num Campo de batalha, com a Paz de Jesus. Imagem alguma define tão bem o nosso núcleo, como esta. No exterior, o trabalho é rigoroso e incessante, mas, dentro de nós, existe uma tranq uilidade que nós mesmos dificilmente podemos compreender. – O serviço circunscreve -se à cidade? – perguntei. – Não – o trabalho é multiforme. Eu e Aldonina, por exemplo, temos grandes ta refas de assistência junto dos recém -encarnados. Nossa cidade prepara, em média, quinze a vinte reencarnações diárias e torna -se imprescindível assistir os companheiros ou tutelados, pelo menos no período infantil mais tenro, que compreende os primeiros se te anos de existência carnal. E talvez porque lesse em nossos olhos a mais viva admiração, a jovem adiantou -se, explicando: – Felizmente, porém, temos as faculdades de volitação bastante adestradas. Raramente encontramos empecilhos vibratórios e podemos, p or isso mesmo, agir com grande economia de tempo. Além disso, somente nossos instrutores vão ao serviço sozinhos. Quanto a nós, não saímos, a não ser em grupos. Necessitamos auxílio recíproco, não só no que diz com a eficiência, senão também no que se refe re ao amparo magnético. E, sorrindo de modo singular, concluiu: – No trabalho de assistência aos outros e defesa de nós mesmos, não podemos dispensar a prática avançada e justa da cooperação sincera. |
André Luiz | Cecília ao órgão Poucas vezes, no circulo carnal, tivera o prazer de assistir a reunião tão seleta. Todos os lustres estavam magnificamente acesos e, lá fora, as grandes árvores, docemente agitadas pelo vento brando, pareciam refletir o clarão lunar. Pares graciosos passeavam ao longo da varanda e das es cadarias extensas. O castelo enchera -se de alegria, com a crescente multiplicação de convidados. O administrador mostrava -se orgulhoso de confraternizar com os colaboradores diretos da sua obra, na recepção condigna aos amigos da colônia próxima. O júbilo transparecia em todos os rostos e eu, observando a beleza do espetáculo, meditava na ventura da vida social, no ambiente daqueles que começavam a compreender e praticar o “amai -vos uns aos outros”, distanciados da hipocrisia e das convenções aviltantes. Conversávamos, animadamente, quando Alfredo nos convidou para o Salão de Música. Houve geral contentamento. A senhora Bacelar, dando o braço à nobre Ismália, parecia encantada com a lembrança. Dirigimo -nos para o grande recinto, prodigiosamente iluminado por luzes de um azul doce e brilhante. Deliciosa música embalava -nos a alma. Observei, então, que um coro de pequenos músicos executava harmoniosa peça, ladeando um grande órgão, algo diferente dos que conhecemos na Terra. Oitenta crianças, meninos e meninas, surgiam, ali, num quadro vivo, encantador. Cinq uenta tangiam instrumentos de corda e trinta conservava m-se, graciosamente, em posição de canto.. Executavam, com maravilhosa perfeição, uma linda barcarola que eu nunca ouvira no mundo. Comovidíssimo, ouvi o administrador explicar: – As crianças do Posto são as nossas flores vivas. Dão -nos perfume, encantamento, alegria, suavizando -nos todos os trabalhos. Abeiramo -nos do órgão, sentando -nos todos em confortáveis poltronas. Quando as crianças terminaram, sob a plausos calorosos, Ismália pediu a Cecília executasse alguma coisa. – Eu? – disse a jovem, corando – se a senhora vem das altas esferas, onde a harmonia é santificada e pura, como poderei executar para os seus ouvidos? – Não diga isso, Cecília – tornou, so rridente, a generosa esposa do administrador –, a música elevada é sublime em toda parte. Vá, minha filha! |
André Luiz | Lembre -me o lar terreno nos dias mais belos!... E, antes que a jovem Bacelar perguntasse qual a peça preferida, Ismália continuou: – Os serviços musi cais do Posto leva m-me a recordar a velha Fazenda, quando voltava do Internato... Meus pais estimavam as composições europ eias e, quase todas as noites, ensaiava ao piano... E, fixando em Cecília os olhos úmidos e brilhantes, rematou: – Sua mamãe deve lemb rar comigo a música predileta de meu velho e carinhoso pai... Notei que a senhora Bacelar disse alguma coisa à filha, em voz baixa, e vimos Cecília caminhar para o grande instrumento, sem hesitação. Com emoção indizível, ouvimo -la executar, magistralmente, a ‘Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, acompanhada pelas crianças exultantes. Fixei o rosto de Ismália, notando, pela luz do seu olhar, que seus pensamentos vagueavam longe, talvez em torno do antigo ninho doméstico. Via enxugar as lágrimas discretas e a braçar Cecília carinhosamente, ao findar a execução. – Agora, Cecília, cante alguma canção da própria alma! – falou a nobre senhora com ternuras de mãe – mostre -nos seu coração... Os senhores Bacelar estavam satisfeitos e emocionados. Lia -se-lhes nos gesto s o carinho com que acompanhavam os menores movimentos da filha. A jovem sorriu, voltou ao teclado, mas permanecia, agora, fundamente transfigurada. Seu belo semblante parecia refletir alguma luz diferente, que vinha de mais alto. Começou a cantar, de mane ira misteriosa e comovedora. A música parecia sair-lhe das profundezas do coração, mergulhando -nos em sublime emotividade. Procurei guardar as palavras da maravilhosa canção, mas seria impossível repeti -las integralmente, no círculo dos encarnados na Terra . A sombra da meia -noite não poderia traduzir o revérbero da aurora. Mas de algo me lembro, para registrar aqui, com a fidelidade de que é suscetível minha memória imperfeita. Como se fora rodeada de claridades diversas daquela em que nos banhávamos, Cecíl ia cantou com voz veludosa e cariciante: “Guardei para os teus olhos As estrelas brilhantes do céu calmo... Guardei para tua alma Todos os lírios puros dos caminhos!... Amado meu, amado meu, Como é longa a viagem entre escolhos Neste oceano imenso da sauda de, Ao sublime luar da eternidade!... Em vão, a fada Esperança Acende a luz dentro de mim... Porque te foste ao mundo, assim? Volta, amado! |
André Luiz | Ainda mesmo Que as tuas mãos estejam frias E que teus pés sangrem de dor. Trago comigo o bálsamo, a ternura, Volta a mim, Vem respirar, de novo, no jardim Da Imortal união!... Curarei tuas chagas de amargura, Dar-te-ei o roteiro para a estrada, Amarei os que amas, Para que me abençoes com o teu sorriso. Volta, amado! Esquece a dor e a sombra do passado, Volta, de novo, ao nosso paraíso!...” Quando desferiu as últimas notas, vi -lhe o semblante lavado em lágrimas, como se fora banhado em pérolas de luz. Observei que a senhora Bacelar, muitíssimo comovida, tocou de leve a mão de Ismália, e falou: – Cecília nunca o esquece. A esposa do administrador, mostrando -se extremamente sensibilizada, indagou: – Não têm vocês novas notícias de Hermínio? – O pobrezinho tem vivido de queda em queda – esclareceu a nobre interlocutora – e Cecília sabe que não poderá contar com ele, por mui to tempo ainda, guardando, por esse motivo, muita mágoa íntima. Entretanto, nossa filha não desanima e trabalha, incessantemente, cheia de esperança. Nesse momento, porém, a jovem regressava ao círculo familiar, enxugando os olhos. A esposa de Alfredo abra çou-a e falou: – Minhas felicitações! Não sabia que você progredira tanto na arte divina! E que bela canção!... Cecília fez um gesto de timidez, beijou a mão da carinhosa amiga e retrucou: – Perdoe -me, querida Ismália, meu coração permanece ainda muito ligado à Terra!... Ismália, porém, de olhos úmidos e compreendendo -lhe o sofrimento intimo, conchegou -a ao peito e murmurou: – Devotar -se não é crime, minha boa Cecília. O amor é luz de Deus, ainda mesmo quando resplandeça no fundo do abismo. |
André Luiz | Melodia sub lime Num gesto nobre, Aniceto pediu a Ismália que executasse algum motivo musical de sua elevada esfera. A esposa de Alfredo não se fez rogada. Com extrema bondade, sentou -se ao órgão, falando, gentil: – Ofereço a melodia ao nosso caro Aniceto. E, ante n ossa admiração comovida, começou a tocar maravilhosamente. Logo às primeiras notas, alguma coisa me arrebatava ao sublime. Estávamos extasiados, silenciosos. A melodia, tecida em misteriosa beleza, inundava -nos o espírito em torrentes de harmonia divina. P enetrava -me o coração um campo de vibrações suavíssimas, quando fui surpreendido por percepções absolutamente inesperadas. Com assombro indefinível, reparei que a esposa de Alfredo não cantava, mas no seio caricioso da música havia uma prece que atingia o sublime – oração que eu não escutava com os ouvidos mas recebia em cheio na alma, através de vibrações sutis, como se o melodioso som estivesse impregnado do verbo silencioso e criador. As notas de louvor alcançava m-me o âmago do espírito, arrancando -me lágrimas de intraduzível emotividade: “O Senhor Supremo de Todos os Mundos E de Todos os Seres, Recebe, Senhor, O nosso agradecimento De filhos devedores do teu amor! Dá-nos tua bênção. Ampara -nos a esperança, Ajuda -nos o ideal Na estrada Imensa da vida... Seja para o teu coração, Cada dia, Nosso primeiro pensamento de amor! Seja para tua bondade Nossa alegria de viver!... Pai de amor infinito Dá-nos tua mão generosa e santa. Longo é o caminho. Grande o nosso débito, |
André Luiz | Mas inesgotável é a nossa esperança. Pai A mado, Somos as tuas criaturas, Raios divinos De tua Divina inteligência. Ensina -nos a descobrir Os tesouros imensos Que guardaste Nas profundezas de nossa vida, Auxilia -nos a acender A lâmpada sublime Da Sublime Procura! Senhor, Caminhamos contigo Na etern idade!... Em Ti nos movemos para sempre. Abençoa -nos a senda, Indica -nos a Sagrada Realização. E que a glória eterna Seja em teu eterno trono!... Resplandeça contigo a Infinita Luz, Mane em teu coração misericordioso A Soberana Fonte do Amor, Cante em tua Criação Infinita O sopro divino da eternidade. Seja a tua bênção Claridade aos nossos olhos, Harmonia ao nosso ouvido, Movimento às nossas mãos, Impulso aos nossos pés. No amor sublime da Terra e dos Céus!... Na beleza de todas as vidas, Na progressão de t odas as coisas, Na voz de todos os seres, Glorificado sejas para sempre, Senhor.” Que melodia era aquela que se ouvia através de sons inarticulados? Não pude conter as lágrimas abundantes. Cecília comovera -nos a sensibilidade, lembrando as harmonias terre nas e os afetos humanos. Ismália, no entanto, arrebatava -nos o Espírito, elevando -nos ao Supremo Pai. Nunca ouvira oração de louvor como aquela! Além disso, a esposa de Alfredo glorificava o Senhor de maneira diferente, inexprimível na linguagem humana. A prece tocara -me as recônditas fibras do coração e reconhecia que nunca meditara na grandeza divina, como naquele instante em que uma alma santificada falava de Deus, com |
André Luiz | a maravilha de suas riquezas espirituais. E não era só eu a chorar como criança. Anice to enxugava os olhos, de maneira discreta, e algumas senhoras levavam o lenço ao rosto. Compreendi que a oração terminara, porque a música mudou de expressão. O caráter heroico cedeu lugar a lirismo encantador. Experimentando a profunda serenidade ambiente , vi que luzes prodigiosas jorravam do Alto sobre a fronte de Ismália, envolvendo -a num arco irisado de efeito magnético e, com admiração e enlevo, observei que belas flores azuis partiam do coração da musicista, espalhando -se sobre nós. Desfazia m-se como se feitas de caridosa bruma anilada, ao tocar -nos, de leve, enchendo -nos de profunda alegria. A maior parte caía sobre Aniceto, fazendo -nos recordar as palavras amigas da dedicatória. Impressionava m-me profundamente aquelas corolas fluídicas, de sublime az ul-celeste, multiplicando -se, sem cessar, no ambiente, e penetrando -nos o coração como pétalas constituídas apenas de colorido perfume. Sentia -me tão alegre, experimentava tamanho bom ânimo que não conseguiria traduzir as emoções do momento. Mais alguns mi nutos e Ismália terminou a magistral melodia. A esposa do administrador desceu até nós, coroada de intensa luz. Alfredo avançou, beijando -a no rosto, ao mesmo tempo em que Aniceto lhe estendia a destra, agradecido. – Há muito tempo não ouvia músicas tão su blimes como as desta noite – exclamou nosso orientador, sorrindo. Cecília falou -nos do sublime amor terrestre, Ismália arrebatou -nos ao divino amor celestial. Id eia feliz a de permanecermos no Posto! Fomos igualmente socorridos pela luz da amizade, que nos revigorou o bom ânimo! Aproximara m-se os Bacelares, eminentemente comovidos. – Que maravilhosas flores nos deste, querida amiga! – disse a mãezinha de Cecília, abraçando a esposa de Alfredo. – Voltaremos ao trabalho, repletos de energia nova! – acrescento u o senhor Bacelar, sorridente. A extensa sala estava cheia de notas de reconhecimento e júbilo sincero. A melodia de Ismália constituíra singular presente do Céu. A alegria e o bom ânimo transpiravam em todos os rostos. Observando que Aniceto se retirava para um canto do salão, procurei -o, ansioso. Desejava esclarecer o fenômeno da prece sem palavras, das harmonias, das luzes e das flores. Antes, porém, das interpelações do aprendiz, o orientador amigo sorriu, amável, e explicou: – Conheço a sua sede, Andr é. Não precisa perguntar. Impressionou -se você com a grandeza espiritual da nobre companheira do nosso amigo. Não precisarei alinhar esclarecimentos. Recorda -se de Ana, a infeliz criatura que dorme nos pavilhões, entre pesadelos cruéis? Lembra -se de Paulo, o caluniador? Não os viu carregando pesados fardos mentais? Cada um de nós traz, nos caminhos da vida, os arquivos de si mesmo. Enquanto os maus exibem o inferno que criaram para o íntimo, os bons revelam o paraíso que edificaram no próprio coração. Ismál ia já amontoou muitos tesouros que as traças não |
André Luiz | roem. Ela já pode dar da infinita harmonia a que se devotou pela bondade e pelo divino amor. A luz que vimos é a mesma que jorra do plano superior, de maneira incessante, inundando os caminhos da vida, mas a melodia, a prece e as flores constituem sublime criação dessa alma santificada. Ela repartiu conosco, neste momento, uma parte dos seus tesouros eternos! Peçamos ao Senhor, meu amigo, que não tenhamos recebido em vão as sublimes dádivas! |
André Luiz | A caminho da Crosta Após nos refazermos pela manhã, considerando a viagem ainda longa, despedimo -nos, comovidos. Pelo menos, quanto a mim, podia afirmar que me afastava com mágoa, tão belas as lições ali colhidas! Alfredo e a esposa nos abraçaram, sensibilizados, de sejando -nos jornada feliz e êxito no trabalho. Vários amigos da véspera estavam presentes, saudando -nos jubilosos. Tomamos o carro, agradavelmente surpreendidos. Ser-me-ia muito difícil descrever a pequena máquina, que mais se assemelhava a pequeno automóv el de asas, a deslocar -se impulsionado por fluidos elétricos acumulados. Sempre atencioso, Aniceto explicou: – Aceitei a cooperação do aparelho, não porque os deseja escravizados ao menor esforço, mas porque a permanência, embora ligeira, no Posto de Socor ro, constituiu ensejo dos mais frutuosos à aquisição de conhecimentos necessários. Receberam vocês lições intensivas, relativamente aos nossos irmãos perturbados e sofredores, bem como sobre os efeitos da prece. Desse modo, temos nosso expediente bastante adiantado, considerando que se encontram ambos em tarefa de observação e aprendizado, acima de tudo. E, depois de pequena pausa, continuou: – Não creiam, todavia, que possamos aproveitar a máquina até a Crosta. Calculo que só poderemos voar até ao meio -dia. Em seguida, prosseguiremos a pé. Aniceto calou -se por instantes, sorriu noutra expressão fisionômica, e acentuou: – Isto, porém, acontecerá somente enquanto não hajam vocês criado asas espirituais, que possam vencer todas as resistências vibratórias. Sem elhante realização pode não estar distante. Dependerá do esforço que desejarem despender no trabalho aquisitivo. Todo aquele que opere, e coopere de espírito voltado para Deus, poderá aguardar sempre o melhor. Não é promessa de amizade. É lei. O pequeno ap arelho nos conduziu por enormes distâncias, sempre no ar, mas conservando -se a reduzida altura do solo. Quase precisamente ao meio -dia, estacionamos em humilde pouso, |
André Luiz | destinado a abastecimento e reparação de maquinaria de natureza daquela em que havíamos v iajado. Despediu -se de nós o condutor, que nos desejou boa viagem, preparando -se para regressar. A paisagem tornou -se, então, muito fria e diferente. Não estávamos em caminho trevoso, mas muito escuro e nevoento. Tornara -se densa a atmosfera, Alterando -nos a respiração. Aniceto contemplou, conosco, a vastidão caliginosa e falou em tom grave: – Com quatro horas de locomoção, estaremos na Crosta. Reparem as sombras que nos rodeiam, identifiquem a mudança geral. Infelizmente, as emissões vibratórias da Humanid ade encarnada são de natureza bastante inferior, em nos referindo à maioria das criaturas terrestres, e estas regiões estão repletas de resíduos escuros, de matéria mental dos encarnados e desencarnados de baixa condição. Atravessaremos grandes zonas, não propriamente tenebrosas, mas muito obscuras ao nosso olhar. Daqui a duas horas, porém, encontraremos sinais da luz solar. Nossa peregrinação, francamente, foi muito pesada e dolorosa, e, somente aí, avaliei, de fato, a enorme diferença da estrada comum, qu e liga a Crosta a “Nosso Lar” e aquela que agora percorríamos a pé, vencendo obstáculos de vulto. Imaginei, comovido, o sacrifício dos grandes missionários espirituais que assistem o homem, compreendendo, então, quão meritório lhes é o serviço e como neces sitam disposições especiais e extraordinário bom ânimo, para auxiliarem as criaturas encarnadas, de maneira constante. Os monstros, que fugiam à nossa aproximação, escondendo -se no fundo sombrio da paisagem, eram indescritíveis e, obedecendo a determinaçõe s de Aniceto, não posso ensaiar qualquer informe nesse sentido, a fim de não criar imagens mentais de ordem inferior no espírito dos que, acaso, venham a ler estas humildes notícias. No horário previsto por nosso orientador, começamos a vislumbrar, de novo , a luz do Sol, como se estivéssemos em madrugada clara. O espetáculo era magnífico e novo para mim. Calor brando começou a revigorar -nos. Aniceto fixou o quadro maravilhoso dos raios de luz atravessando as sombras, e falou, de olhos úmidos: – Agradeçamos ao Senhor dos Mundos a bênção do Sol! Na Natureza física, é a mais alta imagem de Deus que conhecemos. Temo -lo, nas mais variadas combinações, segundo a substância das esferas que habitamos, dentro do sistema. Ele está em “Nosso Lar”, de acordo com os elem entos básicos de vida, e permanece na Terra segundo as qualidades magnéticas da Crosta. É visto em Júpiter de maneira diferente, ilumina Vênus com outra modalidade de luz. Aparece em Saturno noutra roupagem brilhante. Entretanto, é sempre o mesmo, sempre a radiosa sede de nossas energias vitais! Avançamos, comovidos, e, dai há algum tempo, surgiu -nos o astro sublime, na posição que antecede o crepúsculo. Doutras vezes, viajando sempre através da estrada luminosa e fácil de ser percorrida, em vista das possi bilidades de volitação, não fizera maior reparo. Agora, porém, que atravessara névoas compactas, anotava diferenças profundas. |
André Luiz | A certa distância, surgia a Terra, não na forma esférica, porque nos achávamos não longe da Crosta, mas como paisagem além, a int erpenetrar -se nas extensas regiões espirituais. O Sol resplandecia, rumo ao Poente, como enorme lâmpada de ouro. Aniceto, que parecia alegrar -se sobremaneira, exclamou: – Entramos na zona de influenciação direta da Crosta. Poderemos, doravante, praticar a volitação, utilizando nossos conhecimentos de transformação da força centrípeta. A luz que nos banha resulta do contato magnético entre a energia positiva do Sol e a força negativa da massa planetária. Prossigamos. Não tardaremos a entrar no Rio de Janeiro . A essa altura, assaltou -me o desejo de perguntar alguma coisa relativamente à direção. – Como nos orientaremos? – indaguei, curioso. – Antes de tudo – respondeu o instrutor – é preciso não esquecer que nossas colônias estão situadas no campo magnético da América do Sul. Qualquer bússola seria sensível, de agora em diante, mas, em nosso caso, é indispensável educar o pensamento e orientar -nos dentro da energia que lhe é peculiar. Empregamos, de novo, a capacidade volitante e, dentro em pouco, as matas de P etrópolis estavam à vista. Mais alguns minutos e perlustrávamos as grandes artérias cariocas. Por sugestão do instrutor, abeiramo -nos do mar, em exercício respiratório de maior expressão. Vicente e eu estávamos positivamente exaustos. Reconhecíamos que o esforço fora significativo para nossas escassas forças. Indiferentes à nossa presença, os transeuntes passavam apressados, de mente chumbada aos problemas de ordem material. Fonfonavam ônibus repletos. A grande baía figurava -se-nos cheia de forças renovador as. Quando se acendiam as primeiras luzes elétricas, Aniceto convidou -nos, amavelmente: – Vamos ao reconforto! Vocês estão fatigadíssimos. Irei mostrar -lhes que “Nosso Lar” tem, igualmente, alguns refúgios na Crosta. |
André Luiz | Oficina de “Nosso Lar” Entre dez oito e dezenove horas, atingimos uma casa singela de bairro modesto. No longo percurso, através de ruas movimentadas, surpreendia -me, sobremaneira, por se me depararem quadros totalmente novos. Identificava, agora, a presença de muitos desencarnados de ord em inferior, seguindo os passos de transeuntes vários, ou colados a eles, em abraço singular. Muitos dependurava m-se a veículos, contemplava m-nos outros, das sacadas distantes. Alguns, em grupos, vagavam pelas ruas, formando verdadeiras nuvens escuras que houvessem baixado repentinamente ao solo. Assustei -me. Não havia anotado tais ocorrências nas excursões anteriores ao círculo carnal. Aniceto, porém, explicou que não fora vão o auxílio recebido para intensificação do poder visual. Estávamos em tarefa de observação ativa, com vistas ao aprendizado. Não dissimulava, entretanto, minha surpresa. As sombras sucedia m-se umas às outras e posso assegurar que o número de entidades inferiores, invisíveis ao homem comum, não era menor, nas ruas, ao de pessoas encarna das, em contínuo vaivém. Não havia, ali, a serenidade dos ambientes de “Nosso Lar”, nem a calma relativa do Posto de Socorro de Campo da Paz. Receios imprevistos instalava m-se-me n'alma, desagradáveis choques íntimos assaltava m-me o coração, sem que lhes pudesse localizar a procedência. Tinha a impressão nítida de havermos mergulhado num oceano de vibrações muito diferentes, onde respirávamos com certa dificuldade. Nosso instrutor esclarecia que, com o tempo, seriam dilatados nossos poderes de resistência e que as penosas sensações experimentadas obedeciam à circunstância de ser aquela a primeira vez que descíamos ao ambiente da Crosta em serviço de análise mais intenso. Recomendava -nos bom ânimo e, sobretudo, a conservação da fortaleza mental, ante quaisque r quadros menos estimáveis que nos defrontassem de imprevisto. A eficiência do auxilio, exclamava ele, necessita educação persistente. Não seria possível ajudar alguém, prendendo -nos a fraquezas de qualquer espécie. Os conselhos de Aniceto acalmava m-nos a alma surpreendida e inquieta, e eu tudo fazia, no íntimo, para ajustar -me aos alvitres do bondoso orientador, mesmo porque asseverava ele que diversos companheiros adiavam nobres realizações, em virtude das manifestações de injustificável receio. |
André Luiz | Aquela re sidência de aspecto tão humilde, que alcançávamos, agora, proporcionava -me cariciosa impressão de conforto. Estava lindamente iluminada por clarões espirituais, que recordavam precisamente nossa cidade tão distante. Fundamente surpreendido, reparei que o n osso orientador se detivera. Notando a nossa admiração, Aniceto indicou a casa pobre, e falou: – Teremos aqui o nosso refúgio. É uma oficina que representa “Nosso Lar”. Profundo assombro empolgou -me o íntimo, mas não tive ensejo para indagações. Precisava seguir o instrutor, que tomara a direção da casa pequenina. Aproximamo -nos do jardim que rodeava a construção muito simples e, estupefato, observei que numerosos companheiros espirituais assomavam à janela, saudando -nos alegremente. Que significava tudo aq uilo? De outras vezes, visitara minha cidade e meu antigo lar, mas nunca vira tal coisa. Aniceto compreendeu -me a perplexidade e explicou: – Os irmãos que nos saúdam são trabalhadores espirituais que se abrigam nesta tenda de amor. Um cavalheiro muito simp ático e acolhedor abriu -nos a porta. Este pormenor foi outra nota imprevista. Tal não sucedia quando voltava à minha velha casa terrena. As portas cerradas não me ofereciam obstáculos. Ali, porém, vigorava um sistema vibratório de vigilância que eu não con hecia, até então. Nosso instrutor envolveu o anfitrião num abraço amistoso, apresentando -nos em seguida. – Aqui, meu caro Isidoro – disse a indicar -nos, carinhoso –, são nossos amigos Vicente e André, novos cooperadores de serviço, em “Nosso Lar”. – Muito bem! Muito bem! – exclamou Isidoro, abraçando -nos – nossas atividades precisam de trabalhadores operosos. Entrem! E acrescentou, hospitaleiro: – A casa pertence a todos os cooperadores fiéis do serviço cristão. Era a primeira vez que eu via uma entidade es piritual com tão segura chefia de uma casa terrestre. Penetramos o ambiente modesto. Altamente surpreendido, reparei o interior. A paisagem material mostrava alguns móveis singelos, velhos quadros a óleo nas paredes alvas, velha máquina de costura moviment ada por uma jovem aparentando dezesseis anos, um rapazote de doze anos presumíveis, atento a cadernetas de exercício escolar, três crianças de nove, sete e cinco anos, aproximadamente, e, como figura central do grupo doméstico, uma senhora de quarenta anos , mais ou menos, tricoteando uma blusa. Notei, porém, que da fronte, do tórax, do olhar e das mãos dessa senhora irradiava -se luz incessante que me não permitia sofrear minhas expressões admirativas. Aniceto designou -a, respeitoso, e falou: – Temos, aqui, a nossa irmã Isabel. Para os olhos humanos ela é a viúva de Isidoro, mas para nós é uma servidora leal nas atividades da fé. |
André Luiz | Reparei que Dona Isabel parecia, de algum modo, registrar a nossa presença, acusando certa surpresa no olhar, mas Aniceto adiantou -se, esclarecendo: – Nossa amiga é senhora de grande vidência psíquica, mas os benfeitores que nos orientam os esforços recomendam não se lhe permita a visão total do que se passa em torno de suas faculdades mediúnicas. O conhecimento exato da paisagem espi ritual, em que vive, talvez lhe prejudicasse a tranq uilidade. Isabel, portanto, apenas pode ver, mais ou menos, a vigésima parte dos serviços espirituais em que colabora, de modo direto... A essa altura, Isidoro nos indicou pequena sala ao lado, e falou a Aniceto em particular: – Desculpe m-me se não lhes posso acompanhar no repouso necessário. Descansem, contudo, à vontade. Tenho serviços urgentes na recepção de outros amigos. Nosso mentor agradeceu, comovidamente, e, acompanhando -o, alcançamos modesto salã o pobremente mobiliado, mas quase repleto de entidades evolvidas em conversação edificante. Confortadoras luzes brilhavam em todos os recantos. Havia ali um velho relógio, tosca mesa de grandes proporções, uma dúzia de cadeiras e alguns bancos rústicos. A claridade espiritual reinante, todavia, era de maravilhoso efeito. Muita gente esclarecida e generosa do plano invisível aos humanos aí se reunia. Aniceto cumprimentou os grupos que lhe eram mais íntimos, de modo especial, e apresentou -nos com a bondade de sempre. Sentindo -nos a admiração, esclareceu, quando nos vimos mais a sós num canto do salão: – Estamos numa oficina de “Nosso Lar”. Isidoro e Isabel edificara m-na, num ato de heroísmo e fé, tendo saído de nossa cidade para essa tarefa, vai para mais de q uarenta anos. Graças a Deus, ambos têm vencido, galhardamente, árduas provas, e mantêm seus compromissos corajosamente, em serviço na Crosta. Há três anos, voltou ele para nossa esfera, e contudo, graças ao altruísmo da esposa e aos vínculos de amor espiri tual que conservam acima de todas as expressões físicas, continuam estreitamente unidos, como no primeiro dia do reencontro na existência material. Dada esta circunstância invulgar, as autoridades de “Nosso Lar” concederam -lhe permissão para continuar nest a casa como esposo amigo, pai devotado, sentinela vigilante e trabalhador fiel. E, observando talvez a nossa maior surpresa, Aniceto acrescentou: – Sim, amigos, o acaso não define responsabilidades nem atende a construção séria. A edificação espiritual ped e esforço e dedicação. Assim como os navios do mundo necessitam de âncoras firmes para atenderem eficientemente à sua tarefa nos portos, também nós precisamos de irmãos corajosos e abnegados que façam o papel de âncoras entre as criaturas encarnadas, a fim de que, por elas, possam os grandes benfeitores da Espiritualidade Superior se fazerem sentir entre os homens ainda animalizados, ignorantes e infelizes. |
André Luiz | Culto doméstico Nas primeiras horas da noite, Dona Isabel abandonou a agulha e convidou os filh inhos para o culto doméstico. Notando o interesse que me despertavam as crianças, Aniceto explicou: – As meninas são entidades amigas de “Nosso Lar”, que vieram para serviço espiritual e resgate necessário, na Terra. O mesmo, porém, não acontece ao pequeno , que procede de região inferior. De fato, eu identificava perfeitamente a situação, O rapazola não se revestia de substância luminosa e atendia ao convite materno, não como quem se alegra, mas como quem obedece. Com tamanha naturalidade se sentaram todos em torno da mesa, que compreendi a antig uidade daquele abençoado costume familiar. A filha mais velha, que atendia por Joaninha, trazia cadernos de anotações e recortes de jornais. A viúva sentou -se à cabeceira e, após meditar breves instantes, recomendou à pequena Neli, de nove anos, fizesse a oração inicial do culto, pedindo a Jesus o esclarecimento espiritual. Todos os trabalhadores invisíveis sentara m-se, respeitosos. Isidoro e alguns companheiros mais íntimos do casal permaneceram ao lado de Dona Isabe l, sendo quase todos vistos e ouvidos por ela. Tão logo começou aquele serviço espiritual da família, as luzes ambientes se tornaram muito mais intensas. Profunda sensação de paz envolvia -me o coração. A pequena Neli, em voz comovente, fez a prece: – Senho r, seja feita a vossa vontade, assim na Terra como nos Céus. Se está em vosso santo desígnio que recebamos mais luz, permiti, Senhor, tenhamos bastante compreensão no trabalho evangélico! Dai-nos o pão da alma, a água da vida eterna! Sede em nossos coraçõe s, agora e sempre. Assim seja!... Dona Isabel pediu à filha mais velha lesse uma página instrutiva e consoladora e, em seguida, algum fato interessante do noticiário comum, ao que Joaninha atendeu, lendo pequeno capitulo de um livro doutrinário sobre a irreflexão, e um episódio triste de jornal leigo. A primogênita de Isidoro, que revelava muita doçura e afabilidade, parecia impressionada. Tratava -se de uma jovem de bairro distante, vitima de suicídio doloroso. O repórter gravara a cena |
André Luiz | com característicos muito fortes. A leitora estava trêmula, sensibilizada. Assim que Joaninha terminou, Dona Isabel abriu o Novo Testamento, como se estivesse procedendo ao acaso, mas, em verdade, eu via que Isidoro, do nosso plano, intervinha na operação, ajudando a focaliza r o assunto da noite. A seguir, fixou o olhar na página pequenina e falou: – A mensagem -versículo de hoje, meus filhos, está no capítulo do Evangelho de São Mateus. E lendo o versículo , fê -lo em voz alta: – “Outra parábola lhes propôs, dizendo: – O R eino dos Céus é semelhante ao grão de mostarda que o homem tomou e semeou no seu campo”. Observei, então, um fenômeno curioso. Um amigo espiritual, que reconheci de nobilíssima condição, pelas vestes resplandecentes, colocou a destra sobre a fronte da gene rosa viúva. Antes que lhe perguntasse, Aniceto explicou em voz quase imperceptível: – Aquele é o nosso irmão Fábio Aleto, que vai dar a interpretação espiritual do texto lido. Os que estiverem nas mesmas condições dele, poderão ouvir -lhe os pensamentos; mas, os que estiverem em zona mental inferior, receberão os valores interpretativos, como acontece entre os encarnados, isto é, teremos a luz espiritual do verbo de Fábio na tradução do verbo materializado de Isabel. Nosso mentor não poderia s er mais explícito. Em poucas palavras fornecera -me a súmula da extensa lição. Notei que a viúva de Isidoro entrara em profunda concentração por alguns momentos, como se estivesse absorvendo a luz que a rodeava. Em seguida, revelando extraordinária firmeza no olhar, iniciou o comentário: – Lemos hoje, meus filhos, uma página sobre a irreflexão e a notícia de um suicídio em tristíssimas circunstâncias. Afirma o jornal que a jovem suicida se matou por excessivo amor; entretanto, pelo que vimos aprendendo, estamos certos de que ninguém comete erros por amar verdadeiramente. Os que amam, de fato, são cultivadores da vida e nunca espalham a morte. A pobrezinha estava doente , perturbada, irrefletida. Entreg ou-se à paixão que confunde o raciocínio e rebaixa o sentimento. E nós sabemos que, da paixão ao sofrimento, ou à morte, não é longa a distância. Lembremos, todavia, essa amiga desconhecida, com um pensamento de simpatia fraternal. Que Jesus a proteja nos caminhos novos. Não estamos examinando um ato, que ao Senhor compete julgar, mas um fato, de cuja expressão devemos extrair o ensinamento justo. “A mensagem evangélica desta noite assevera, pela palavra do nosso Divino Mestre aos discípulos, que o reino do s céus é também semelhante ao grão de mostarda que o homem tomou e semeou no seu coração . Devemos ver, neste passo, meus filhos, a lição das coisas mínimas. A esfera carnal onde vivemos está repleta de irreflexões de toda sorte. Raras criaturas começam a refletir seriamente na vida e nos deveres, antes do leito da morte física. Não devemos fixar o pensamento tão só nessa jovem que se suicidou em condições tão dramáticas, ao nos referirmos aos ensinos de agora. Há homens e mulheres, |
André Luiz | com maiores responsabilid ades, em todos os bairros, que evidenciam paixões nefastas e destruidoras no campo dos sentimentos, dos negócios, das relações sociais. As mentes desequilibradas pela irreflexão permanecem, neste mundo, quase por toda a parte. É que nos temos descuidado da s coisas pequeninas. Grande é o oceano, minúscula é a gota, mas o oceano não é senão a massa das gotas reunidas. Fala -nos o Mestre, em divino simbolismo, da semente de mostarda. Recordemos que o campo do nosso coração está cheio de ervas espinhosas, demora ndo, talvez, há muitos séculos, em terrível esterilidade. Naturalmente, não deveremos esperar colheitas milagrosas. É indispensável amanhar a terra e cuidar do plantio. A semente de mostarda, a que se refere Jesus, constitui o gesto, a palavra, o pensament o da criatura. “Há muitas pessoas que falam bastante em humildade, mas nunca revelam um gesto de obediência. Jamais realizaremos a bondade, sem começarmos a ser bons. Alguma coisa pequenina há de ser feita, antes de edificarmos as grandes coisas. O Senhor ensinou, muitas vezes, que o reino dos céus está dentro de nós. Ora, é portanto em nós mesmos que devemos desenvolver o trabalho máximo de realização divina, sem o que não passaremos de grandes irrefletidos. A floresta também começou de sementes minúsculas . E nós, espiritualmente falando, temos vivido em densa floresta de males, criados por nós mesmos, em razão da invigilância na escolha de sementes espirituais. A palestra de uma hora, o pensamento de um dia, o gesto de um momento, podem representar muito e m nossas vidas. Tenhamos cuidado com as coisas pequeninas e selecionemos os grãos de mostarda do reino dos céus. Lembremos que Jesus nada ensinou em vão. Toda vez que ‘pegarmos’ desses grãos, consoante a Palavra Divina, semeando -os no campo íntimo, receber emos do Senhor todo o auxilio necessário. Conceder -nos-á a chuva das bênçãos, o sol do amor eterno, a vitalidade sublime da esfera superior. Nossa semeadura crescerá e, em breve tempo, atingiremos elevadas edificações. Aprendamos, meus filhos, a ciência de começar, lembrando a bondade de Jesus a cada instante. O Mestre não nos desampara, segue -nos amorosamente, inspira -nos o coração. Tenhamos, sobretudo, confiança e alegria!” Reparei que Fábio retirou a mão da fronte da viúva e observei que ela entrava a me ditar, como quem sentira o afastamento da id eia em curso. Havia grande comoção na assembl eia invisível às crianças que, por sua vez, também pareciam impressionadas. Dona Isabel voltou a contemplar maternalmente os filhos, e falou: – Procuremos, agora, conv ersar um pouco. |
André Luiz | Mãe e filhos No comentário evangélico, eu recolhia observações interessantes. Tal como no caso de Ismália, quando lhe ouvíamos a sublime melodia, a interpretação de Fábio estava cheia de maravilhas espirituais que transcendiam à capa cidade receptiva de Dona Isabel. A viúva de Isidoro parecia deter tão somente uma parte. Desse modo, as crianças recebiam a lição de acordo com as possibilidades mediúnicas da palavra materna, enquanto que a nós outros se propiciava o ensinamento com marav ilhoso conteúdo de beleza. Sempre solícito, o instrutor esclareceu: – Não se admirem do fenômeno! Cada qual receberá a luz espiritual conforme a própria capacidade. Há muitos companheiros nossos, aqui reunidos, que registram o comentário de Fábio com mais dificuldade que as próprias crianças. Experimentam, ainda, grandes limitações. Havia grande respeito em todos os desencarnados presentes. Fábio Aleto sentou -se em plano superior, ao passo que Isidoro se acomodava junto da esposa, no impulso afetivo do pai que se aproxima, solícito, para a conversação carinhosa com os filhos bem -amados. Nesse instante, a pequenina Marieta, que parecia haver atingido os sete anos, aproveitando o momento de palavra livre, perguntou à mãezinha, em tom comovedor: – Mamãe, se Jes us é tão bom, porque estamos comendo só uma vez por dia, aqui em casa? Na casa de Dona Fausta, eles fazem duas refeições, almoçam e jantam. Neli me contou que no tempo de papai também fazíamos assim, mas agora... Por que será? A viúva esboçou um sorriso al go triste e falou: – Ora, Marieta, você vive muito impressionada com essa questão. Não devemos, filhinha, subordinar todos os pensamentos às necessidades do estômago. Há quanto tempo estamos tomando nossa refeição diária e gozando boa saúde? Quanto benefíc io estaremos colhendo com esta frugalidade de alimentação? Joaninha interveio, acrescentando: – Mamãe tem toda a razão. Tenho visto muita gente adoecer por abuso da mesa. |
André Luiz | – Além disso – acentuou Dona Isabel, confortada –, vocês devem estar certos de que Je sus abençoa o pão e a água de todas as criaturas que sabem agradecer as dádivas divinas. É verdade que Isidoro partiu antes de nós, mas nunca nos faltou o necessário. Temos nossa casinha, nossa união espiritual, nossos bons amigos. Convença m-se de que o pa pai está trabalhando ainda por nós. Nessa altura da palestra, dada a nossa comoção, Isidoro enxugou os olhos úmidos. Noemi, a caçula pequenina, falou em voz infantil: – É mesmo, é verdade! Eu vi papai ajudando a segurar o bolo que Dona Cora nos trouxe domi ngo. – Também vi, Noemi – disse Dona Isabel, de olhos vivamente brilhantes –, papai continua auxiliando -nos. E voltando -se para todos, acentuou: – Quando sabemos amar e esperar, meus filhos, não nos separamos dos entes queridos que morrem para a vida físic a. Tenhamos certeza na proteção de Jesus!... Marieta, parecendo agora absolutamente tranq uila, assentiu: – Quando a senhora fala, mamãe, eu sinto que tudo é verdade! Como Jesus é bom! E se nós não tivéssemos a senhora? Tenho visto os pequenos mendigos aban donados. Talvez não comam coisa alguma, talvez não tenham amigos como os nossos! Ah! Como devemos ser agradecidos ao Céu!... A viúva, que se confortava visivelmente, ouvindo aquelas palavras, exclamou com profunda emoção: – Muito bem, minha filha! Nunca de veremos reclamar e sim louvar sempre. E possivelmente não saberia você compreender a situação, se estivéssemos em mesas lautas. Observei, porém, que o menino não compartilhava aquele dilúvio de bênçãos. Entre Dona Isabel e as quatro filhinhas havia permuta constante de vibrações luminosas, como se estivessem identificadas no mesmo ideal e unidas numa só posição; mas o rapazote permanecia espiritualmente distante, fechado num círculo de sombras. De quando em quando, sorria irônico, insensível à significação do momento. Valendo -se da pausa mais longa, ele perguntou à genitora, menos respeitosamente: – Mamãe, que entende a senhora por pobreza? Dona Isabel respondeu, muito serena: – Creio, meu filho, que a pobreza é uma das melhores oportunidades de elevação, ao nosso alcance. Estou convencida de que os homens afortunados têm uma grande tarefa a cumprir, na Terra, mas admito que os pobres, além da missão que lhes cabe no mundo, são mais livres e mais felizes. Na pobreza, é mais fácil encontrar a amizade sincera, a visão da assistência de Deus, os tesouros da natureza, a riqueza das alegrias simples e puras. É claro que não me refiro aos ociosos e ingratos dos caminhos terrenos. Refiro -me aos pobres que trabalham e guardam a fé. O homem de grandes possibilidades fi nanceiras muito dificilmente saberá discernir entre a afeição e o interesse mesquinho; crente de que tudo pode, nem sempre consegue entender a divina proteção; |
André Luiz | pelo conforto viciado a que se entrega, as mais das vezes se afasta das bênçãos da Natureza; e em vista de muito satisfazer aos próprios capri chos, restringe a capacidade de alegrar -se e confiar no mundo. Apesar da beleza profunda daquela opinião, o rapazola permaneceu impassível, respondendo algo contrariado: – Infelizmente, não posso concordar com a senhora. Até os garotos do jardim de infânci a pensam de modo contrário. Dona Isabel mudou a expressão fisionômica, assumiu a atitude de quem instrui com a noção de responsabilidade, e acentuou: – Não estamos aqui num jardim de infância, meu filho. Estamos no jardim do lar, competindo -nos saber que a s flores são sempre belas, mas que a vida não pode prosseguir sem a bênção dos frutos. Por onde andarmos no mundo, receberemos muitos alvitres da mentira venenosa. É preciso vigiar o coração, Joãozinho, valorizando as bênçãos que Jesus nos envia. O rapazin ho, entretanto, demonstrando enorme rebeldia íntima, tornou: – A senhora não considera razoável alugar este salão a fim de termos algum dinheiro a mais? Estive conversando, ontem, com o “seu” Maciel, quando vim da escola. Ele nos pagaria bem, para ter aqui um depósito de móveis. Dona Isabel, de ânimo decidido, respondeu com energia, sem irritação: – Você deve saber, meu filho, que enquanto respeitarmos a memória de seu pai, este salão será consagrado às nossas atividades evangélicas. Já lhes contei a histór ia do nosso culto doméstico e não desejo que vocês sejam cegos às bênçãos do Cristo. Mais tarde, Joãozinho, quando você entrar diretamente na luta material, se for agradável ao seu temperamento, construa casas para alugar; mas agora, meu filho, é indispensável que você considere este recanto como algo de sagrado para sua mamãe. – E se eu insistir? – perguntou, mal humorado, o pequeno orgulhoso. A viúva, muito cal ma, esclareceu firme: – Se você insistir, será punido, porque eu não sou mãe para criar ilusões perigosas ao coração dos filhinhos que Deus me confiou. Se muito amo a vocês, precisarei incliná -los ao caminho reto. O pequeno quis retrucar, mas a luz emitida pelo tórax de Dona Isabel, ao que me pareceu, confundiu -lhe o espírito rebelde e vi -o calar -se, a contragosto, amuado e enraivecido. Admirei, então, profundamente, aquela bondosa mulher, que se dirigia à filha mais velha como amiga, às filhinhas mais nova s como mãe, e ao filho orgulhoso como instrutora sensata e ponderada. Aniceto, que também se mostrava satisfeito, disse -nos em tom significativo: – O Evangelho dá equilíbrio ao coração. A pequena Neli, amedrontada, pediu, humilde: – Mamãe, não deixe Joãozi nho alugar a sala! A viúva sorriu, acariciou o rostinho da filha e asseverou: – Joãozinho não fará isso, saberá compreender a mamãe. Não falemos |
André Luiz | mais neste assunto, Neli. E fixando o relógio, dirigiu -se à primogênita: – Joaninha, minha filha, ore agradecen do, em nosso nome. Nosso horário está findo. A jovem, com expressão nobre e carinhosa, agradeceu ao Senhor, tocando -nos os corações. |
André Luiz | No santuário doméstico Terminado o culto familiar, um dos companheiros também rendeu graças. – Esperemos que esses c eleiros de sentimentos se multipliquem – disse Aniceto, sensibilizado. – O mundo pode fabricar novas indústrias, novos arranha -céus, erguer estátuas e cidades, mas, sem a bênção do lar, nunca haverá felicidade verdadeira. – Bem -aventurados os que cultivam a paz doméstica – exclamou uma senhora simpática, que estivera presente ao nosso lado, durante a reunião. Dois cooperadores de “Nosso Lar” servira m-nos alimentação leve e simples, que não me cabe especificar aqui, por falta de termos analógicos. – Em ofici nas como esta – explicou o instrutor amigo – é possível preservar a pureza de nossas substâncias alimentícias, Os elementos mais baixos não encontram, neste santuário, o campo imprescindível à proliferação. Temos bastante luz para neutralizar qualquer mani festação da treva. E, enquanto a família humana de Isidoro fazia frugal refeição de chá com torradas, numa saleta próxima, fazíamos nós ligeiro repasto, entremeado de palestra elevada e proveitosa. O ambiente continuou animado, em teor de franca alegria. Depois das vinte e três horas, a viúva recolheu -se com os filhos, em modesto aposento. Intraduzível a nossa sensação de paz. Aniceto, Vicente e eu, em companhia doutros amigos, fomos ao pequeno jardinzinho que rodeava a habitação. As flores veludosas recend iam. A claridade espiritual ambiente, como que espancava as sombras da noite. Respirando as brisas cariciosas que sopravam da Guanabara, reparei, pela primeira vez, no delicado fenômeno, que não havia observado até então. Uma pequena carinhosa, enquanto a mãezinha palestrava com um amigo, despreocupadamente, colheu um cravo perfumoso, num grito de alegria. Vi a menina colher a flor, retirá -la da haste, ao mesmo tempo em que a parte material do cravo emurchecia, quase de súbito. A senhora repreendeu -a, com c alor: – Que é isso, Regina? Não temos o direito de perturbar a ordem das coisas. Não repitas, minha filha! Desgostaste a mamãe! Aniceto, sorrindo bondoso, explicou discretamente: |
André Luiz | – Esta é a nossa Irmã Emilia, servidora em “Nosso Lar”, que vem ao encontro d o esposo ainda encarnado. – E ele virá até aqui? – interrogou Vicente, curioso. – Virá pelas portas do sono físico – acrescentou nosso orientador, sorridente. – Estas ocorrências, no círculo da Crosta, dão -se aos milhares, todas as noites. Com a maioria de irmãos encarnados, o sono apenas reflete as perturbações fisiológicas ou sentimentais a que se entregam; entretanto, existe grande número de pessoas que, com mais ou menos precisão, estão aptas a desenvolver este intercâmbio espiritual. Estava surpreendid o. Aquele trabalho interessante, a que nos trazia Aniceto, com tão vasto campo de serviços gerais, fazia -me intensamente feliz. Em cada canto pressentia atividades novas. Embora as luzes que nos rodeavam, notei que os céus prometiam aguaceiros próximos. As brisas leves transformava m-se repentinamente, em ventania forte. Não obstante, as sensações de sossego eram agradabilíssimas. – O vento, na Crosta, é sempre uma bênção celeste – exclamou Aniceto, sentencioso. – Podemos avaliar -lhe o caráter divino, em vir tude da nossa condição atual. A pressão atmosférica sobre os Espíritos encarnados é, aproximadamente, de quinze mil quilos. – Todavia, é interessante notar – aduziu Vicente – que não sentimos tamanho peso sobre os ombros. – É a diferença dos veículos de ma nifestação – esclareceu Aniceto, atencioso. – Nossos corpos e os de nossos companheiros encarnados apresentam diversidade essencial. Imaginemos o círculo da Crosta como um oceano de oxigênio. As criaturas terrestres são elementos pesados que se movimentam no fundo, enquanto nós somos as gotas de óleo, que podem voltar à tona, sem maiores dificuldades, pela qualidade do material de que se constituem. A essa altura do esclarecimento, notei que formas sombrias, algumas monstruosas, se arrastavam na rua, à proc ura de abrigo conveniente. Reparei, com espanto, que muitas tomavam a nossa direção, para, depois de alguns passos, recuarem amedrontadas. Provocavam assombro. Muitas, pareciam verdadeiros animais perambulando na via pública. Confesso que insopitável recei o me invadira o coração. Calmo, como sempre, Aniceto nos tranq uilizou: – Não temam – disse. Sempre que ameaça tempestade, os seres vagabundos da sombra se movimentam procurando asilo. São os ignorantes que vagueiam nas ruas, escravizados às sensações mais fortes dos sentidos físicos. Encontra m-se ainda colados às expressões mais baixas da experiência terrestre e os aguaceiros os incomodam tanto quanto ao homem comum, distante do lar. Buscam, de preferência, as casas de diversão noturna, onde a ociosidade en contra válvula nas dissipações. Quando isto não se lhes torna acessível, penetram as residências abertas, considerando que, para eles, a matéria do plano ainda apresenta a mesma densidade característica. E, demonstrando interesse em valorizar a lição do mi nuto, acrescentou: |
André Luiz | – Observem como se inclinam para cá, fugindo, em seguida, espantados e inquietos. Estamos colhendo mais um ensinamento sobre os efeitos da prece. Nunca poderemos enumerar todos os benefícios da oração. Toda vez que se ora num lar, prepar a-se a melhoria do ambiente doméstico. Cada prece do coração constitui emissão eletromagnética de relativo poder. Por isso mesmo, o culto familiar do Evangelho não é tão só um curso de iluminação interior, mas também processo avançado de defesa exterior, p elas claridades espirituais que acende em torno. O homem que ora traz consigo inalienável couraça. O lar que cultiva a prece transforma -se em fortaleza, compreenderam? As entidades da sombra experimentam choques de vulto, em contato com as vibrações lumino sas deste santuário doméstico, e é por isso que se mantêm a distância, procurando outros rumos... Daí a momentos, penetrávamos, de novo, no salão abençoado da modesta residência. Como quem estivesse atravessando um país de surpresas, outro fato me desperta va profunda admiração. Isidoro e Isabel vieram a nós, de braços entrelaçados, irradiando ventura. Aquela viúva pobre do bairro humilde vestia -se agora lindamente, não obstante a adorável singeleza de sua presença. Sorria contente, ao lado do esposo, via -nos a todos, cumprimentava -nos, amável. – Meus amigos – disse ela, serena –, meu marido e eu temos uma excursão instrutiva para esta noite. Deixo -lhes as nossas crianças por algumas horas e, desde já, lhes agradeço o cuidado e o carinho. – Vá, minha filha! – respondeu uma senhora idosa – aproveite o repouso corporal. Deixe os meninos conosco. Vá tranq uila! O casal afastou -se com a expressão dum sublime noivado. Nosso orientador inclinou -se para nós e falou: – Observam vocês como a felicidade divina se manifes ta no sono dos justos? Poucas almas encarnadas conheço com a ventura desta mulher admirável, que tem sabido aprender a ciência do sacrifício individual. |
André Luiz | Atividade plena No salão acolhedor de Dona Isabel, permanecíamos em plena atividade. Lá fora, co meçara o aguaceiro forte, mas tínhamos a nítida impressão de grande distância da chuva torrencial. Logo às primeiras horas da madrugada, o movimento intensificou -se. Muita gente ia e vinha. – Numerosos irmãos – explicou o orientador – encontra m-se neste pouso de trabalho espiritual, na esfera a que os encarnados chamariam sonho. Não é fácil transmitir mensagens de teor instrutivo, nessa tarefa, utilizando lugares comuns, contaminados de matéria mental menos digna. Nas oficinas edificantes, porém, onde conse guimos acumular maiores quantidades de forças positivas da espiritualidade superior, é possível prestar grandes benefícios aos que se encontram encarnados no planeta. Acentuei minhas observações, verificando que muitas das pessoas recém -chegadas pareciam c onvalescentes, titubeantes... Algumas se mantinham de pé, sob o amparo de braços carinhosos. Eram os amigos encarnados a se valerem do desprendimento parcial, pelo sono físico, que se reuniam a nós, aproveitando o auxílio de entidades generosas e dedicadas . Reconhecia, entretanto, que a maior parte não entendia, com precisão, o que se lhes desejava dizer. Muitos pareciam doentes, incompreensivos. Sorriam infantilmente, revelando boa vontade na recepção dos conselhos, mas grande incapacidade de retenção. Eu estudava os quadros ambientes, com justa estranheza. Sempre cuidadoso, Aniceto veio ao encontro de nossa perplexidade. – Os Espíritos encarnados – disse –, tão logo se realize a consolidação dos laços físicos, ficam submetidos a imperiosas leis dominantes na Crosta. Entre eles e nós existe um espesso véu. É a muralha das vibrações. Sem a obliteração temporária da memória, não se renovaria a oportunidade. Se o nosso campo lhes fora francamente aberto, olvidariam as obrigações imediatas, estimariam o parasiti smo, prejudicando a própria evolução. Eis porque raramente estão lúcidos ao nosso lado. Na maioria dos casos, junto de nós, permanecem vacilantes, enfraquecidos... Vejam aquela jovem senhora encarnada, em conversa com a vovozinha que trabalha conosco, em “ Nosso Lar”. Assim dizendo, Aniceto indicou um grupo mais próximo. A anciã, de olhos brilhantes e gestos decididos, abraçava -se à neta, lânguida e palidíssima. |
André Luiz | – Nieta – exclamava a velhinha, em tom firme –, não dês tamanha importância aos obstáculos. Esqu ece os que te perseguem, a ninguém odeies. Conserva tua paz espiritual, acima de tudo. Tua mãe não te pode valer agora, mas crê na continuidade de nossa vida. A vovó não te esquecerá. A calúnia, Nieta, é uma serpente que ameaça o coração; entretanto, se a encararmos de frente, fortes e tranq uilas, veremos, a breve tempo, que a serpente não tem vida própria. É víbora de brinquedo a se quebrar como vidro, pelo impulso de nossas mãos. E, vencido o espantalho, em lugar da serpente, teremos conosco a flor da vir tude. Não temas, querida! Não percas a sagrada oportunidade de testemunhar a compreensão de Jesus!... A jovem senhora não respondia, mas seus olhos semilúcidos estavam cheios de pranto. Demonstrava no gesto vago uma consolação divina, recostada ao seio car inhoso da devotada velhinha. – Esta irmã se lembrará de tudo, ao despertar no corpo físico? – perguntei, intrigado, ao nosso orientador. Aniceto sorriu e esclareceu: – Sendo a avó superior e ela inferior, e, examinando ainda a condição dos planos de vida e m que ambas se encontram, a jovem encarnada está sob o domínio espiritual da benfeitora. Entre ambas, portanto, há uma corrente magnética recíproca, salientando -se, porém, que a vovó amiga detém uma ascendência positiva. A neta não vê o ambiente com precis ão, nem ouve as palavras integralmente. Não esqueçamos que o desprendimento no sono físico vulgar é fragmentário e que a visão e a audição, peculiares ao encarnado, se encontram nele também restritas, O fenômeno, pois, é mais de união espiritual que de per cepções sensoriais, propriamente ditas. A jovem está recebendo consolações positivas, de Espírito a Espírito. Não se recordará, despertando nos véus materiais mais grosseiros, de todas as minúcias deste venturoso encontro que acabamos de presenciar. Acorda rá, porém, encorajada e bem disposta, sem poder identificar a causa da restauração do bom ânimo. Dirá que sonhou com a avó num lugar onde havia muita gente, sem recordar as minudências do fato, acrescentando que viu, no sonho, uma cobra ameaçadora, que log o se transformou em serpente de vidro, quebrando -se ao impulso de suas mãos, para transformar -se em perfumosa flor, da qual ainda conserva a lembrança agradável do aroma. Afirmará que soberano conforto lhe invadiu a alma e, no fundo, compreenderá a mensage m consoladora que lhe foi concedida. – Não se lembrará, contudo, das palavras ouvidas? – indagou Vicente, curioso. – Precisaria ter adquirido profunda lucidez no campo da existência física – prosseguiu Aniceto, explicando – e devo esclarecer que recordará as imagens simbólicas da víbora e da flor, porque está em relação magnética com a veneranda avozinha, recebendo -lhe a emissão de pensamentos positivos. A benfeitora não fala apenas. Está pensando fortemente também. A neta, todavia, não está ouvindo ou vend o pelo processo comum, mas está percebendo claramente a criação mental da anciã amiga e dará notícia exata dos símbolos entrevistos e arquivados na memória real e profunda. Desse modo, não terá |
André Luiz | dificuldade para informar -se quanto à essência do que a bondos a avó deseja transmitir -lhe ao coração sofredor, compreendendo que a calúnia, quando fere uma consciência tranq uila não passa de serpente mentirosa, a transformar -se em flor de virtude nova, quando enfrentada com o valor duma coragem serena e cristã. A liç ão fora profundamente significativa para mim. Começava a adquirir amplas noções do intercâmbio entre as duas esferas. Pensei no longo esforço dos que indagam o mundo dos sonhos. Quanta riqueza psíquica, suscetível de conquista, se os pesquisadores consegui ssem deslocar o centro de estudo, das ocorrências fisiológicas para o campo das verdades espirituais! Lembrei a psicanálise, a tese freudiana, as manifestações instintivas, inferiores. Percebendo -me as elucubrações, o devotado mentor dirigiu -me a palavra d e maneira especial: – Freud – asseverou Aniceto – foi um grande missionário da Ciência; no entanto, manteve -se, como qualquer Espírito encarnado, sob certas limitações. Fez muito, mas não tudo, na esfera da indagação psíquica. Pela pausa do nosso instrutor , percebi que ele não desejava entrar em minucioso exame da teoria famosa. Lembrando, porém, a extraordinária importância atribuída pelo grande cientista às tendências inferiores, indaguei, um tanto tímido: – Haverá, porém, centros de reunião para os Espír itos desequilibrados no mal, como acontece, aqui, aos amigos interessados no bem? O generoso mentor sorriu, benévolo, e falou: – Não haja dúvidas quanto a isto. Através das correntes magnéticas suscetíveis de movimentação, quando se efetua o sono dos encar nados, são mantidas obsessões inferiores, perseguições permanentes, explorações psíquicas de baixa classe, vampirismo destruidor, tentações diversas. Ainda são poucos, relativamente, os irmãos encarnados que sabem dormir para o bem... E, fazendo um gesto p or demais expressivo, concluiu: – Livre -nos o Senhor de cair novamente... |
André Luiz | Trabalho incessante Ao alvorecer, observei que Aniceto recebia numerosos amigos, com os quais se entendeu em particular. Informou -nos o estimado orientador, por espírito de delicadeza, que trazia consigo incumbências várias, de acordo com as instruções de Telésforo, das quais era forçado a tratar em caráter privado, não nos ocultando, todavia, o objetivo essencial, que era, ao que disse, o combate ativo a uma grande cooperativa de desencarnados ignorantes, congregados para o mal. Enquanto ele se mantinha em conversação íntima, ouvíamos, por nossa vez, outros amigos da faina espiritual. O dia raiava, agora, com soberano esplendor. Tínhamos a impressão de que a chuva da noite varr era as sombras do firmamento. Pelo número de trabalhadores espirituais que pernoitaram na casinha humilde, reconheci a importância daquele núcleo de serviço, tão apagado aos olhos do mundo. Uma senhora, que se aproximara de nós, exclamava, comovida: – Que o Senhor recompense a nossa irmã Isabel, concedendo -lhe forças para resistir às tentações do caminho. Por haver descansado neste pouso de amor, pude encontrar minha pobre filha, desviando -a do suicídio cruel. Graças à Providência Divina! Incapaz de sofrear o desejo de aprender, perguntei, curioso: – Mas como a encontrou, minha irmã? – Em sonho – respondeu a velhinha bondosa. – Minha Dalva ficou viúva há três anos e, faz onze meses, deixei -a só, por haver também desencarnado. A pobrezinha não tem resistido a o sofrimento quanto devera e deixou -se empolgar por entidades maléficas, que lhe tramam a ruína. Embalde me aproximo dela, durante o dia, mas, com a mente engolfada em negócios e complicações materiais, não me pôde sentir a influenciação. Precisava encontr ar-me com ela à noite e isso não era fácil, porque não tenho bastante elevação espiritual para operar sozinha e o grupo em que sirvo não poderia demorar na Crosta uma noite inteira por minha causa. Foi então que uma amiga me trouxe a este posto de serviço de “Nosso Lar”. Aqui descansei e pude agir com os grupos de tarefa permanente, ajudada por infatigáveis operários do bem. |
André Luiz | – E conseguiu seus fins com facilidade? – indagou Vicente, interessado. – Graças a Jesus! – respondeu a senhora, evidenciando enorme satisfação – agora sei que minha filha recebeu meus alvitres carinhosos de mãe e estou certa de que me atenderá as rogativas. – Escute, minha amiga – interroguei –, há muitos postos de “Nosso Lar”, como este? – Ao que me informaram, há regular número deles, não somente aqui, mas também noutras cidades do país, além de numerosas oficinas que representam outras colônias espirituais, entre as criaturas corporificadas na Terra. Nesses núcleos, há sempre possibilidades avançadas, imprescindíveis ao nosso abasteci mento para a luta. Nesse instante, dois camaradas que nos haviam dirigido a palavra durante a noite, despertando -nos sincera simpatia, apresentara m-nos saudações. – Mas, como? – perguntei – retira m-se tão cedo? – Vamos ao trabalho – respondeu -me um deles –; hoje, à noite, realizar -se-á o estudo evangélico e devemos auxiliar os irmãos ignorantes e sofredores que estejam em condições de vir até aqui. – Há também semelhante tarefa? – indaguei, espantado. – Como não, meu caro? O próprio Jesus já dizia, há muito s séculos, que a seara é grande. Há trabalho para todos. E cumpre -nos reconhecer que esta oficina de assistência cristã funciona, há quase vinte anos, de maneira incessante. – Vocês, no entanto – interroguei –, permanecem aqui desde os primórdios da fundaç ão? O interlocutor esclareceu prontamente: – Não. Muitos, como nós, fazem aqui estágios de serviço. Somente alguns cooperadores de Isidoro e Isabel aqui estacionam desde o início da instituição. Nós outros, contudo, não nos demoramos em trabalho por mais d e dois anos consecutivos. Um posto, como este, é sempre uma escola ativa e santa, e os que se encontrem no clima da boa vontade não devem perder ensejo de aprender. – Desculpe m-me tantas interrogativas – tornei –, mas estimaria saber se vocês são os únicos com as atribuições de recrutar os que ignoram e sofrem, para a instrução e o consolo. – Não. Hildegardo e eu somos auxiliares apenas de alguns quarteirões no centro urbano. Nesse ramo de socorro, os colaboradores são numerosos. A essa altura, um dos irmão s, que me parecia integrar o corpo de orientação da casa, aproximou -se e falou ao nosso interlocutor, de maneira especial: – Vieira, recomendo a você e ao Hildegardo a melhor observância do nosso critério doutrinário. Será inútil trazerem até aqui entidade s vagabundas ou de má fé, obedecendo aos alvitres da simpatia pessoal. Não podemos perder tempo com Espíritos escarninhos e ociosos, nem com aqueles que se aproximam de nossa tenda alimentando certas intenções de natureza inferior. |
André Luiz | Não faltarão providência s de Jesus para essa gente, em outra parte. Lembre m-se disso. Não é falta de caridade, é compreensão do dever. Temos um programa de trabalho muito sério, no capitulo da evangelização e do socorro, não podemos abusar da concessão de nossos maiores da Espiri tualidade Superior. Quem aceita um compromisso não vive sem contas. Por muito que vocês amem a alguma entidade ociosa ou irônica, não facilitem os abusos dela. Ajude m-na de maneira individual, quando disponham de tempo e possibilidades para isso. Não arras tem o grupo a dificuldades. Não se esqueçam de que existem determinados núcleos de tarefa para os surdos e cegos voluntários. Vieira e o colega fizera m-se palidíssimos, não respondendo palavra. Quando o orientador se afastou, sereno e ativo, Vieira explico u, desapontado: – Recebemos uma admoestação justa. E porque visse nosso desejo de aprender, prosseguiu, atencioso: – Infelizmente, Hildegardo e eu temos alguns parentes desencarnados em dolorosas condições espirituais. Na reunião passada, trouxemos meu tio Hilário e o primo Carlos, embora soubéssemos que ambos não se encontram preparados para reflexões sérias, pelo desrespeito às leis divinas em que se movimentam, nos ambientes inferiores. Manifestara m-se ambos, porém, tão desejosos de renovação, que ouvimo s, acima de tudo, a simpatia pessoal, esquecendo a necessidade de preparação conveniente. Vieram conosco, sentara m-se entre os ouvintes numerosos. Mas, em meio dos estudos evangélicos, tentaram assaltar as faculdades mediúnicas da irmã Isabel, para transmi ssão de uma mensagem de teor menos edificante. Sentindo -nos a vigilância e surpreendidos pelos cooperadores desta santificada oficina, revoltara m-se, estabelecendo grande distúrbio. Não fossem as barreiras magnéticas do serviço de guarda, teriam causado ma les muito sérios. Assim, a reunião foi menos frutuosa, pela grande perda de tempo. Ora, naturalmente, fomos responsabilizados... – Meu Deus! – exclamou Vicente, admirado – quanta lição nova! – Ah! Sim, meu amigo – tornou Vieira, resignado –, aqui não devem os abusar tanto do amor, como no circulo carnal! Ninguém está impedido de ajudar, querer bem, interceder; todos podemos auxiliar os que amamos, com os recursos que nos sejam próprios, mas a palavra “dever” tem aqui uma significação positiva para quem desej e caminhar sinceramente para Deus. |
André Luiz | Rumo ao campo Quase todos os servidores espirituais pusera m-se a caminho de tarefas variadas. Somente alguns amigos permaneceriam na residência de Dona Isabel, em missão de auxílio e vigilância. Notei que Aniceto c ontinuava distribuindo instruções diversas, dirigindo -se, em caráter confidencial, a determinados companheiros, a respeito da missão que lhe confiara Telésforo. Antes do meio -dia, porém, convidou -nos a acompanhá -lo. – Na oficina – disse -nos, bondoso – enco ntramos revigoramento imprescindível ao trabalho. Recebemos reforços de energia, alimentamo -nos convenientemente para prosseguir no esforço, mas convenhamos que, para muitos de nós, a noite representou uma série de atividades longas e exaustivas. Necessita mos de algum descanso. Voltaremos ao crepúsculo. Aonde iríamos? Ignorava. Recordei que, de fato, se alguns haviam repousado no santuário doméstico, durante a noite, a maioria havia trabalhado intensamente, e conclui que, se muitos pela manhã haviam tomado rumo às obrigações, outros teriam buscado o repouso indispensável. – Aonde vão? – perguntou um companheiro da vigilância, que se fizera nosso amigo. Antes que respondêssemos, Aniceto esclareceu: – Vamos ao campo. E, dirigindo -se especialmente a Vicente e a mim, considerou: – Utilizemos a volitação, mesmo porque não temos objetivos imediatos no centro urbano. Notei que movimentava agora minhas faculdades volitantes com facilidade crescente. A excursão educativa, com escala pelo Posto de Socorro de Campo da Paz, fizera -me grande bem. Melhorara em adestramento, sentia -me fortalecido ante as vibrações de ordem inferior, mobilizava os recursos próprios sem dificuldade. Reparei, igualmente, que minhas possibilidades visuais cresciam sensivelmente. Volitando, não o bservara, até então, o que agora verificava, extremamente surpreendido. Dantes, via somente os homens, os animais, veículos e edifícios chumbados ao solo. Agora, a visão dilatava -se. Reconhecia, de longe, o peso considerável do ar que se agarrava à superfí cie. Tive a impressão de que nadávamos em alta zona do mar de |
André Luiz | oxigênio, vendo em baixo, em águas turvas, enorme quantidade de irmãos nossos a se arrastarem pesadamente, metidos em escafandros muito densos, no fundo lodoso do oceano. – Estão vendo aquelas m anchas escuras na via pública? – indagava nosso orientador, percebendo -nos a estranheza e o desejo de aprender cada vez mais. Como não soubéssemos definir com exatidão, prosseguia explicando: – São nuvens de bactérias variadas. Flutuam quase sempre também, em grupos compactos, obedecendo ao princípio das afinidades. Reparem aqueles arabescos de sombra... E indicava -nos certos edifícios e certas regiões citadinas. – Observem os grandes núcleos pardacentos ou completamente obscuros!... São zonas de matéria me ntal inferior, matéria que é expelida incessantemente por certa classe de pessoas. Se demorarmos em nossas investigações, veremos igualmente os monstros que se arrastam nos passos das criaturas, atraídos por elas mesmas... Imprimindo grave inflexão às pala vras, considerou: – Tanto assalta o homem a nuvem de bactérias destruidoras da vida física, quanto às formas caprichosas das sombras que ameaçam o equilíbrio mental. Como veem , o “orai e vigiai” do Evangelho tem profunda importância em qualquer situação e a qualquer tempo. Somente os homens de mentalidade positiva, na esfera da espiritualidade superior, conseguem sobrepor -se às influências múltiplas de natureza menos digna. Interessado, contudo, em maior esclarecimento, perguntei: – Mas a matéria mental emi tida pelo homem inferior tem vida própria como o núcleo de corpúsculos microscópicos de que se originam as enfermidades corporais? O mentor generoso sorriu singularmente e acentuou: – Como não? Vocês, presentemente, não desconhecem que o homem terreno vive num aparelho psicofísico. Não podemos considerar somente, no capítulo das moléstias, a situação fisiológica propriamente dita, mas também o quadro psíquico da personalidade encarnada. Ora, se temos a nuvem de bactérias produzidas pelo corpo doente, temos a nuvem de larvas mentais produzidas pela mente enferma, em identidade de circunstâncias. Desse modo, na esfera das criaturas desprevenidas de recursos espirituais, tanto adoecem corpos, como almas. No futuro, por esse mesmo motivo, a medicina da alma abso rverá a medicina do corpo. Poderemos, na atualidade da Terra, fornecer tratamento ao organismo de carne. Semelhante tarefa dignifica a missão do consolo, da instrução e do alívio. Mas, no que concerne à cura real, somos forçados a reconhecer que esta perte nce exclusivamente ao homem -Espírito. – Deus meu! – exclamou Vicente, espantado – a que perigos está submetido o homem comum! – Por isso – tornou Aniceto, cuidadoso –, a existência terrestre é uma gloriosa oportunidade para os que se interessam pelo conhec imento e elevação de si mesmos. E, por esta mesma razão, ensinamos a necessidade da fé religiosa |
André Luiz | entre as criaturas humanas. Desenvolvendo essa campanha, não pretendemos intensificar as paixões nefastas do sectarismo, mas criar um estado positivo de confia nça, otimismo e ânimo sadio na mente de cada companheiro encarnado. Até agora, apenas a fé pode proporcionar essa realização. As ciências e as filosofias preparam o campo; entretanto, a fé que vence a morte, é a semente vital. Possuindo -lhe o valor eterno, encontra o homem bastante dinamismo espiritual para combater até a vitória plena em si mesmo. Compreendendo que precisaria completar o esclarecimento, exclamou, depois de pausa mais longa: – Todos precisamos saber emitir e saber receber. Para alcançarem a posição de equilíbrio, nesse mister, empenha m-se os homens encarnados e nós outros, em luta incessante. E já que conhecemos alguma coisa da eternidade, é preciso não esquecer que toda queda prejudica a realização, e todo esforço nobre ajuda sempre. As exp licações recebidas não poderiam ser mais claras. Aquela visão, porém, de ruas repletas de pontos sombrios a se deslocarem vagarosos, atingindo homens e máquinas, nas vias públicas, assombrava -me. Sequioso de ensinamentos, tornei ao assunto: – A lição para mim tem valores incalculáveis. E quando penso no alto poder reprodutivo da flora microbiana... Aniceto, contudo, não me deixou terminar. Conhecendo, de antemão, minha pergunta natural, cortou -me a frase, exclamando: – Sim, André, se não fosse o poder muito maior da luz solar, casada ao magnetismo terrestre, poder esse que destrói intensivamente para selecionar as manifestações da vida, na esfera da Crosta, a flora microbiana de ordem inferior não teria permitido a existência dum só homem na superfície do gl obo. Por esta razão, o solo e as plantas estão cheios de princípios curativos e transformadores. E, abanando significativamente a cabeça, concluiu: – Nada obstante esse poder imenso, recurso divino, enquanto os homens, herdeiros de Deus, cultivarem o campo inferior da vida, haverá também criações inferiores, em número bastante para a batalha sem tréguas em que devem ganhar os valores legítimos da evolução. |
André Luiz | Entre árvores Decorridos alguns minutos, atingíamos pequena propriedade rural, povoada de arvor edo acolhedor. Laranjeiras em flor perdia m-se de vista. Bananeiras estendia m-se em leque, enquanto o goiabal, de longe, semelhava -se a manchas fortes de verdura. A relva macia convidava ao descanso. E o vento calmo passava de leve, sussurrando alguma coisa através da folhagem. Aniceto respirou a longos haustos, e falou: – Os desencarnados, embora não se fatiguem como as criaturas terrestres, não prescindem da pausa de repouso. Em geral, nossas operações, à noite, são ativas e laboriosas. Apenas um terço dos companheiros espirituais, em serviço na Crosta, conserva -se em atividade diurna. E, notando -nos a curiosidade justa, sentenciou: – Aliás, isto é razoável. O dia terrestre pertence, com mais propriedade, ao serviço do Espírito encarnado. O homem deve apren der a agir, testemunhando compreensão das leis divinas. Pelo menos durante certo número de horas, deve estar mais só com as experiências que lhe dizem respeito. Nosso instrutor amigo sorriu e observou: – O dia e a noite constituem, para o homem, uma folha do livro da vida. A maior parte das vezes, a criatura escreve sozinha a página diária, com a tinta dos sentimentos que lhe são próprios, nas palavras, pensamentos, intenções e atos, e no verso, isto é, na reflexão noturna, ajudamo -la a retificar as lições e acertar as experiências, quando o Senhor no -lo permite. Calando -se o nosso orientador, tivemos a atenção exclusivamente voltada para a beleza circundante. Aquele campo amigo e hospitaleiro caracterizava -se por ambiente muito diverso. Não mais as emanaçõe s pesadas da cidade grande, mas o vento leve, embalsamado de suavíssimos perfumes. Refletia eu na bondade do Senhor, que nos oferecia recursos novos, quando Aniceto voltou a dizer: – A Natureza nunca é a mesma em toda parte. Não há duas porções de terra com climas absolutamente iguais. Cada colina, cada vale, possui expressões climatéricas diferentes. É forçoso reconhecer, porém, que o campo, em qualquer condição, no círculo dos encarnados, é o reservatório mais abundante e vigoroso de princípios vitais. Em geral, todos nós, os cooperadores |
André Luiz | espirituais, estimamos o ar da manhã, quando a atmosfera permanece igualmente em repouso, isenta dos glóbulos de poeira convertidos em microscópicos balões de bacilos e de outras expressões inferiores. Entretanto, os trab alhos de hoje não nos permitiram o descanso mais cedo... Apoiamo -nos no veludoso relvado e, percebendo -nos a sede de saber, Aniceto prosseguiu: – Assim me explico, porque na floresta temos uma densidade forte, pela pobreza das emanações, em vista da imperm eabilidade ao vento. Aí, o ar costuma converter -se em elemento asfixiante, pelo excesso de emissões dos reinos inferiores da Natureza. Na cidade, a atmosfera é compacta e o ar também sufoca, pela densidade mental das mais baixas aglomerações humanas. No campo, desse modo, temos o centro ideal... Indicando, prazeroso, as frondes balouçantes, acentuou: – Reina aqui a paz relativa e equilibrada da Natureza terrestre. Nem a selvageria da mata virgem, nem a sufocação dos fluidos humanos. O campo é nosso generoso caminho central, a harmonia possível, o repouso desejável. Embalados ao pio de algumas juritis solitárias, repousamos algumas horas, magnificamente asilados no templo da Natureza. Com as primeiras tonalidades do crepúsculo, Aniceto nos convidou a passeio rápido pelas imediações. Reconhecia que estávamos muito mais bem dispostos. – Somente depois de nos locomovermos por alguns minutos, observei que nas vizinhanças havia grande quantidade de trabalhadores espirituais. Em face das minhas interrogações, nosso mentor explicou, bondosamente: – O campo é também vasta oficina para os serviços de nossa colaboração ativa. E apontando os servidores, que iam e vinham, considerou: – O reino vegetal possui cooperadores numerosos. Vocês, possivelmente, ignoram que muitos irmãos se preparam para o mérito de nova encarnação no mundo, prestando serviço aos reinos inferiores. O trabalho com o Senhor é uma escola viva, em toda parte. Nesse momento, nossa atenção foi atraída por significativo movimento na estrada próxima. Dirigi mo-nos para lá, seguindo os passos de Aniceto, que parecia adivinhar o acontecimento. Observei, então, um quadro interessante: um homem jazia por terra, numa poça de sangue, ao lado de pequeno veículo sustentado por um muar impaciente, dando mostras de gra nde inquietação. Dois companheiros encarnados prestavam socorro ao ferido, apressadamente. “É preciso conduzi -lo à fazenda sem perda de tempo”, dizia um deles, aflito, “temo haja fraturado o crânio.” O número de desencarnados que auxiliava o pequeno grupo, todavia, era muito grande. Um amigo espiritual que me pareceu o chefe, naquela aglomeração, recebeu Aniceto e a nós com deferência e simpatia, explicou rapidamente a ocorrência. O carroceiro havia recebido a patada de um burro e era necessário socorrer o ferido. Serenada a situação, vi o referido superior hierárquico chamar um |
André Luiz | guarda do caminho, interpelando: – Glicério, como permitiu semelhante acontecimento? Este trecho da estrada está sob sua responsabilidade direta. O subordinado, respeitoso, considero u sensatamente: – Fiz o possível por salvar este homem, que, aliás, é um pobre pai de família. Meus esforços foram improfícuos, pela imprudência dele. Há muito procuro cercá -lo de cuidados, sempre que passa por aqui; entretanto, o infeliz não tem o mínimo respeito pelos dons naturais de Deus. É de uma grosseria inominável para com os animais que o auxiliam a ganhar o pão. Não sabe senão gritar, encolerizar -se, surrar e ferir. Tem a mente fechada às sugestões do agradecimento. Não estima senão a praga e o chicote. Hoje, tanto perturbou o pobre muar que o ajuda, tanto o castigou, que pareceu mais animalizado... Quando se tornou quase irracional, pelo excesso de fúria e ingratidão, m eu auxílio espiritual se tornou ineficiente. Atormentado pelas descargas de cólera do condutor, o burro humilde o atacou com a pata. Que fazer? Minha obrigação foi cumprida... O Superior, que ouvia atenciosamente as alegações, respondeu sem hesitar: – Tem razão. E como dirigisse o olhar a Aniceto, desejando aprovação, nosso orientador afirmou: – Auxiliemos o homem, quanto esteja em nossas mãos, cumpramos nosso dever com o bem, mas não desprezemos as lições. Esse trabalhador imprudente foi punido por si mesm o. A cólera é punida por suas conseq uências. Ao mal segue -se o mal. Se os seres inferiores, nossos irmãos no grande lar da vida, nos fornecem os valores do serviço, devemos dar -lhes, por nossa vez, os valores da educação. Ora, ninguém pode educar odiando, nem edificar algo de útil com a fúria e a brutalidade. E, indicando o grupo que conduzia o ferido a uma casa próxima, concluiu, imperturbável: – Como homem comum, nosso pobre amigo sofrerá muitos dias, chumbado ao leito; entre as aflições dos familiares, d emorar -se-á um tanto a restabelecer o equilíbrio orgânico; mas, como Espírito eterno, recebeu agora uma lição útil e necessária. Altamente surpreendido, reparei na grande serenidade do nosso orientador e comecei a compreender que ninguém desrespeita a Natu reza sem o doloroso choque de retorno, a todo tempo. |
André Luiz | Evangelho no ambiente rural Apagados os comentários mais vivos, relativamente ao episódio desagradável, o superior hierárquico daquela grande turma de trabalhadores espirituais indagou do nosso or ientador, com delicadeza: – Nobre Aniceto, valendo -vos da oportunidade, poderíeis interpretar para nós outros alguma das lições evangélicas, ainda hoje? Aniceto aquiesceu, pressuroso. Notei que o interesse em torno do assunto era enorme. Com grande surpres a, vi que os servidores da gleba traziam ao estimado mentor um livro, que não tive dificuldades em identificar. Era um exemplar do Evangelho, que Aniceto abriu firmemente, como quem sabia onde estava a lição do momento. Fixando a página escolhida, começou a meditar, enquanto sublimada luz lhe aureolava a fronte. Houve profundo silêncio. Todos os colaboradores demonstravam grande interesse pela palavra que se fazia. Tudo era de aspecto imponente e calmo na Natureza. Um rebanho bovino acercara -se de nós, atraído por forças magnéticas que não consegui compreender. Alguns muares humildes chegaram, igualmente, de longe. E as aves tranq uilizara m-se nas frondes fartas, sem um pio. A única voz que toava, leve e branda, era a do vento, sussurrando harmonia e frescur a. A paisagem não podia ser mais bela, vestida em ouro líquido do Poente. Excetuada a rusticidade natural do quadro vivo, o ambiente sugeria recordações fiéis dos verdes salões de “Nosso Lar”. Aniceto, mergulhando o olhar no Sagrado Livro, leu em voz alta os versículos , e do capítulo , da Epístola aos Romanos: – Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperan ça de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Em seguida, refletiu alguns instantes e comentou, com evidente inspiração: – “Irmãos, recebamos a bênção do campo, louvando o Amor e a Sabedoria de Nosso Pai! |
André Luiz | “Exaltemos o Soberano Espírito de Vida, que sopra em nós a força eterna da incessante renovação! “Ponderemos a palavra do Apóstolo da Gentilidade, para extrair -lhe o conteúdo divino!... Há milênios a Natureza espera a compreensão d os homens. Não se tem alimentado tão somente de esperança, mas vive em ardente expectação, aguardando o entendimento e o auxílio dos Espíritos encarnados na Terra, mais propriamente considerados filhos de Deus. Entretanto, as forças naturais continuam sofr endo a opressão de todas as vaidades humanas. Isto, porém, ocorre, meus amigos, porque também o Senhor tem esperança na libertação dos seres escravizados na Crosta, para que se verifique igualmente a liberdade na glória do homem. Conheço -vos de perto os sa crifícios, abnegados trabalhadores espirituais do solo terrestre! Muitos de vós aqui permaneceis, como em múltiplas regiões do planeta, ajudando a companheiros encarnados, acorrentados às ilusões da ganância de ordem material. Quantas vezes, vosso auxílio é convertido em baixas explorações no campo dos negócios terrestres? A maioria dos cultivadores da terra tudo exige sem nada oferecer. “Enquanto zelais, cuidadosamente, pela manutenção das bases da vida, tendes visto a civilização funcionando qual vigorosa máquina de triturar, convertendo -se os homens, nossos irmãos, em pequenos Moloques de pão, carne e vinho, absolutamente mergulhados na viciação dos sentimentos e nos excessos da alimentação, despreocupados do imenso débito para com a Natureza amorável e generosa. Eles oprimem as criaturas inferiores, ferem as forças benfeitoras da vida, são ingratos para com as fontes do bem, atendem às indústrias ruralistas, mais pela vaidade e ambição de ganhar, que lhes são próprias, que pelo espírito de amor e utilidad e, mas também não passam de infelizes servos das paixões desvairadas. Traçam programas de riqueza mentirosa, que lhes constituem a ruína; escrevem tratados de política econômica, que redundam em guerra destruidora; desenvolvem o comércio do ganho indébito, colhendo as complicações internacionais que dão curso à miséria; domi nam os mais fracos e os exploram, acordando, porém, mais tarde, entre os monstros do ódio! “É para eles, nossos semelhantes encarnados na Crosta, que devemos voltar igualmente os olhos, com espírito de tolerância e fraternidade. Ajudemo -los ainda, agora e sempre! Não esqueçamos que o Senhor está esperando pelo futuro deles! Escutemos os gemidos da criação, pedindo a luz do raciocínio humano, mas não olvidemos, também, a lágrima desses escravos da corrupção, em cujas fileiras permanecíamos até ontem, auxilia ndo-os a despertar a consciência divina para a vida eterna! Ainda que rodeiem o campo de vaidades e insolências, auxiliemo -los ainda. O Senhor reserva acréscimos sublimes de valores evolutivos aos seres sacrificados. Não olvidará Ele a árvore útil, o anima l exterminado, o ser humilde que se consumiu em benefício de outro ser! Cooperemos, por nossa vez, no despertar dos homens, nossos irmãos, relativamente ao nosso débito para com a Natureza maternal. Sempre, ao voltarmos à Crosta, envolvendo -nos em fluidos do círculo carnal, levamos muito longe a aquisição de nitrogênio. |
André Luiz | “Convertemos em tragédia mundial o que poderia constituir a procura serena e edificante. “Como sabemos, organismo algum poderá viver na Terra sem essa substância e, embora se locomova, no oc eano de nitrogênio, respirando -o na média de mil litros por dia, não pode o homem, como nenhum ser vivo do planeta, apropriar -se do nitrogênio do ar. Por enquanto, não permite o Senhor a criação de células nos organismos viventes do nosso mundo, que proced am à absorção espontânea desse elemento de importância primordial na manutenção da vida, como acontece ao oxigênio comum. Somente as plantas, infatigáveis operárias do orbe, conseguem retirá -lo do solo, fixando -o para o entretenimento da vida noutros seres . Cada grão de trigo é uma bênção nitrogenada para sustento das criaturas, cada fruto da terra é uma bolsa de açúcar e albumina, repleta do nitrogênio indispensável ao equilíbrio orgânico dos seres vivos. “Todas as indústrias agropecuárias não representam, na essência, senão a procura organizada e metódica do precioso elemento da vida. Se o homem conseguisse fixar dez gramas, aproximadamente, dos mil litros de nitrogênio que respira diariamente, a Crosta estaria transformada no paraíso verdadeiramente espir itual. Mas, se muito nos dá o Senhor, é razoável que exija a colaboração do nosso esforço na construção da nossa própria felicidade. Mesmo em Nosso Lar , ainda estamos distantes da grande conquista do alimento espontâneo pelas forças atmosféricas, em caráte r absoluto. E o homem, meus amigos, transforma a procura de nitrogênio em movimento de paixões desvairadas, ferindo e sendo ferido, ofendendo e sendo ofendido, escravizando e tornando -se cativo, segregado em densas trevas! Ajudemo -lo a compreender, para qu e se organize uma era nova. Auxiliemo -lo a amar a terra, antes de explorá -la no sentido inferior, a valer -se da cooperação dos animais, sem os recursos do extermínio! Nessa época, o matadouro será convertido em local de cooperação, onde o homem atenderá ao s seres inferiores e onde estes atenderão às necessidades do homem, e as árvores úteis viverão em meio do respeito que lhes é devido. Nesse tempo sublime, a indústria glorificará o bem e, sentindo -nos o entendimento, a boa vontade e a veneração às leis div inas, permitir -nos-á o Senhor, pelo menos em parte, a solução do problema técnico de fixação do nitrogênio da atmosfera. Ensinemos aos nossos irmãos que a vida não é um roubo incessante, em que a planta lesa o solo, o animal extermina a planta e o homem as sassina o animal, mas um movimento de permuta divina, de cooperação generosa, que nunca perturbaremos sem grave dano à própria condição de criaturas responsáveis e evolutivas! Não condenemos! Auxiliemos sempre!” A assembl eia, tanto quanto nós, estava sob f orte impressão. Aniceto calou -se, contemplou com simpatia os animais e as aves próximas, como se estivesse a endereçar -lhes profundos pensamentos de amor e, a seguir, fechou o Livro Sagrado, com estas palavras: – Observamos com o Evangelho que a criação ag uarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus encarnados! Concordamos que as criaturas |
André Luiz | inferiores têm suportado o peso de iniq uidades imensas! Continuemos em auxilio delas, mas não nos percamos em vãs contendas. Os homens esperam também a nossa mani festação espiritual! Desse modo, ajudemos a todos, no capitulo do grande entendimento. |
André Luiz | Antes da reunião Os preparativos espirituais para a reunião eram ativos e complexos. Chegamos de regresso à residência de Dona Isabel, quando faltavam poucos minu tos para as dezoito horas e já o salão estava repleto de trabalhadores em movimento. Observando, com estranheza, determinadas operações, fiz algumas perguntas ao nosso orientador, que me esclareceu com bondade: – Realizar uma sessão de trabalhos espirituai s eficientes não é coisa tão simples. Quando encontramos companheiros encarnados, entregues ao serviço com devotamento e bom ânimo, isentos de preocupação, de experiências malsãs e inquietações injustificáveis, mobilizamos grandes recursos a favor do êxito necessário. Claro que não podemos auxiliar atividades infantis, nesse terreno. Quem não deseje cuidar de semelhantes obrigações, com a seriedade devida, poderá esperar fatalmente pelos Espíritos menos sérios, porquanto a morte física não significa renovaç ão para quem não procurou renovar -se. Onde se reúnam almas levianas, ai estará igualmente a leviandade. No caso de Isabel, porém, há que lhe auxiliar o esforço edificante. Em todos os setores evolutivos, é natural que o trabalhador sincero e eficiente rece ba recursos sempre mais vastos. Onde se encontre a atividade do bem, permanecerá a colaboração espiritual de ordem superior. Calara -se o bondoso amigo. Continuei reparando as laboriosas atividades de alguns irmãos que dividiam a sala, de modo singular, uti lizando longas faixas fluídicas. Aniceto veio em socorro da minha perplexidade, explicando, atencioso: – Estes amigos estão promovendo a obra de preservação e vigilância. Serão trazidas aos trabalhos de hoje algumas dezenas de sofredores e torna -se impresc indível limitar -lhes a zona de influenciação neste templo familiar. Para isso, nossos companheiros preparam as necessárias divisões magnéticas. Observei, admirado, que eles magnetizavam o próprio ar. Nosso instrutor, porém, informou, gentil: – Não se impre ssione, André. Em nossos serviços, o magnetismo é força preponderante. Somos compelidos a movimentá -lo em grande escala. E, sorrindo, concluiu: – Já os sacerdotes do antigo Egito não ignoravam que, para atingir |
André Luiz | determinados efeitos, é indispensável impregn ar a atmosfera de elementos espirituais, saturando -a de valores positivos da nossa vontade. Para disseminar as luzes evangélicas aos desencarnados, são precisas providências variadas e complexas, sem o que, tudo redundaria em aumento de perturbações. Este núcleo é pequenino, considerado do ponto de vista material, mas apresenta grande significação para nós outros. É preciso vigiar, não o esqueçamos. Enquanto as atividades de preparação espiritual seguiam intensas, Dona Isabel e Joaninha, noutra ordem de ser viço, chegaram ao salão, dispondo arranjos diferentes. Usaram, largamente, a vassoura e o espanador. Revestiram a mesa de toalha muito alva e trouxeram pequenos recipientes de água pura. A uma ordem de um dos superiores daquele templo doméstico, espalhara m-se os vigilantes, em derredor da moradia singela. Nos menores detalhes estava a nobre supervisão dos benfeitores. Em tudo a ordem, o serviço e a simplicidade. Logo após alguns minutos além das dezoito horas, começaram a chegar os necessitados da esfera in visível ao homem comum. Se fosse concedida à criatura vulgar uma vista de olhos, ainda que ligeira, sobre uma assembl eia de espíritos desencarnados, em perturbação e sofrimento, muito se lhes modificariam as atitudes na vida normal. Nessa afirmativa, devem os incluir, igualmente, a maioria dos próprios espiritistas, que fr equen tam as reuniões doutrinárias, alheios ao esforço autoeducativo, guardando da espiritualidade uma vaga id eia, na preocupação de atender ao egoísmo habitual. O quadro de retificações individuais, após a morte do corpo, é tão extenso e variado que não encontramos palavras para definir a imensa surpresa. Aqueles rostos esqueléticos causavam compaixão. Chegavam ao recinto aquelas entidades perturbadas, em pequenos magotes, seguidas de orient adores fraternais. Pareciam cadáveres erguidos do leito de morte. Alguns se locomoviam com grande dificuldade. Tínhamos diante dos olhos uma autêntica reunião de “coxos e estropiados”, segundo o símbolo evangélico. – Em maioria – esclareceu Aniceto – são i rmãos abatidos e amargurados, que desejam a renovação sem saber como iniciar a tarefa. Aqui, poderemos observar apenas sofredores dessa natureza, porque o santuário familiar de Isidoro e Isabel não está preparado para receber entidades deliberadamente perv ersas. Cada agrupamento tem seus fins. Com efeito, os recém -chegados estampavam profunda angústia na expressão fisionômica. As senhoras em pranto eram numerosas. O quadro consternava. Algumas entidades mantinham as mãos no ventre, calcando regiões feridas. Não eram poucas as que traziam ataduras e faixas. – Muitos – disse -nos o mentor – não concordam ainda com as realidades da morte corporal. E toda essa gente, de modo geral, está prisioneira da id eia de enfermidade. Existem pessoas, e vocês, como médicos, as terão conhecido largamente, que cultivam as moléstias com verdadeira volúpia. Apaixona m-se pelos diagnósticos exatos, acompanham no corpo, com indefinível ardor, a manifestação dos indícios mórbidos, estudam a teoria da doença de que são portadoras, com o jamais analisam um dever justo no quadro |
André Luiz | das obrigações diárias, e quando não dispõem das informações nos livros, estimam a longa atenção dos médicos, os minuciosos cuidados da enfermagem e as compridas dissertações sobre a enfermidade de que se constitu em voluntárias prisioneiras. Sobrevindo a desencarnação, é muito difícil o acordo entre elas e a verdade, porquanto prosseguem mantendo a id eia dominante. Ás vezes, no fundo, são boas almas, dedicadas aos parentes do sangue e aproveitáveis na esfera restri ta de entendimento a que se recolhem, mas, no entanto, carregadas de viciação mental por muitos séculos consecutivos. E num gesto diferente, nosso instrutor considerou: – Demoramo -nos todos a escapar da velha concha do individualismo. A visão da universali dade custa preço alto e nem sempre estamos dispostos a pagá -lo. Não queremos renunciar ao gosto antigo, fugimos aos sacrifícios louváveis. Nessas circunstâncias, o mundo que prevalece para a alma desencarnada, por longo tempo, é o reino pessoal de nossas c riações inferiores. Ora, desse modo, quem cultivou a enfermidade com adoração, submeteu -se-lhe ao império. É lógico que devemos, quando encarnados, prestar toda a assistência ao corpo físico, que funciona, para nós, como vaso sagrado, mas remediar a saúde e viciar a mente são duas atitudes essencialmente antagônicas entre si. A palestra era magnificamente educativa; entretanto, o número crescente de entidades necessitadas chamava -nos à cooperação. Muitas choravam baixinho, outras gemiam em voz mais alta. Depois de longa pausa, Aniceto advertiu: – Vamos ao serviço. Para nós, coo peradores espirituais, os trabalhos já começaram. A prece e o esforço dos companheiros encarnados representarão o termo desta reunião de assistência e iluminação em Jesus Cristo. |
André Luiz | Assistência A paisagem de sofrimento, desdobrada aos nossos olhos, lem brava -me o ambiente das Câmaras de Retificação. Entendeu -se Aniceto com Isidoro e falou, resoluto: – Mãos à obra! Distribuamos alguns passes de reconforto! – Mas – objetei – estarei preparado para trabalho dessa natureza? – Porque não? – indagou o instruto r em voz firme – toda competência e especialização no mundo, nos setores de serviço, constituem o desenvolvimento da boa vontade. Bastam o sincero propósito de cooperação e a noção de responsabilidade para que sejamos iniciados, com êxito, em qualquer trab alho novo. Semelhantes afirmativas estimulara m-me o coração. Recordei Narcisa, a dedicada irmã dos infortunados, que permanecia, em “Nosso Lar”, quase sempre sem repouso, como prisioneira do sacrifício. Pareceu -me, ainda, ouvir -lhe a voz fraterna e carinho sa: – “André, meu amigo, nunca te negues, quanto possível, a auxiliar os que sofrem. Ao pé dos enfermos, não olvides que o melhor remédio é a renovação da esperança; se encontrares os falidos e os derrotados da sorte, fala -lhes do divino ensejo do futuro; se fores procurado, algum dia, pelos Espíritos desviados e criminosos, não profiras palavras de maldição. Anima, eleva, educa, desperta, sem ferir os que ainda dormem. Deus opera maravilhas por intermédio do trabalho de boa vontade!” Sem mais hesitação, di spus -me ao serviço. Aniceto designou -me um grupo de seis enfermos espirituais, acentuando: – Aplique seus recursos, André. Com a nossa colaboração, os amigos em tarefa nesta casa poderão atender a responsabilidades diferentes e também imperiosas. Os mais a pagados trabalhadores do bem rejubile m-se pela exemplificação nas lutas comuns e edifique m-se no Senhor Jesus, porque nenhuma de suas manifestações fica perdida no espaço e no tempo. Naquele instante em que fora chamado a prestar auxílios reais, eu não rec orria aos meus cabedais científicos, não me reportava tão somente à técnica da medicina oficial, a que me filiara no mundo, mas recordava aquela Narcisa humilde e simples, das Câmaras de Retificação, enfermeira devotada e carinhosa, que conseguia muito mai s com amor do que com medicações. |
André Luiz | Aproximei -me duma senhora profundamente abatida, lembrando o exemplo da generosa amiga de “Nosso Lar”, entendendo que não deveria socorrer utilizando apenas a firmeza e a energia, mas também a ternura e a compreensão. – Minha irmã – disse, procurando captar -lhe a confiança –, vamos ao passe reconfortador. – Ai! Ai! – respondeu a interpelada – nada vejo, nada vejo! Ah! O tracoma! Infeliz que sou! E me falam em morte, em vida diferente... Como recuperar a vista?! Quero ver, q uero ver!... – Calma – respondi, encorajado –, não confia no Poder de Jesus? Ele continua curando cegos, iluminando -nos o caminho, guiando -nos os passos! Somente mais tarde lembrei que, naquele instante, olvidara a curiosidade doentia, não pensei na impres são deixada pelo tracoma naquele organismo espiritual, nem me preocupei com a expressão propriamente científica do fenômeno, vendo, apenas, à minha frente, uma irmã sofredora e necessitada. E, à medida que me dispunha a observar a prática do amor fraternal , uma claridade diferente começou a iluminar e a aquecer -me a fronte. Lembrando a influência divina de Jesus, iniciei o passe de alivio sobre os olhos da pobre mulher, reparando que enorme placa de sombra lhe pesava na fronte. Pronunciando palavras de anim ação, às quais ligava a melhor essência de minhas intenções, concentrei minhas possibilidades magnéticas de auxílio nessa zona perturbada. Dentro de alguns instantes, a desencarnada desferiu um grito de espanto. – Vejo! Vejo! – exclamou, entre o assombro e a alegria – Grande Deus! Grande Deus! E ajoelhando -se, num movimento instintivo para render graças, dirigia -me a palavra, comovidamente: – Quem sois vós, emissário do bem? Dominava -me profunda emoção, que não conseguia sofrear. Confundia -me a bondade do E terno. Quem era eu para curar alguém? Mas a alegria daquela entidade, libertada das trevas, afirmava a ocorrência, na qual não queria acreditar. A luz daquela dádiva como que mostrava mais fortemente o fundo escuro de minhas imperfeições individuais e o pr anto inundou -me as faces, sem que pudesse retê -lo nos recônditos mananciais do coração. Enquanto a enferma espiritual se desfazia em lágrimas de louvor, também eu me absorvia numa onda de pensamentos novos. O acontecimento surpreendia -me. Desejava socorrer o doente próximo e, contudo, estava enlaçado em singular deslumbramento intimo. Aniceto, porém, aproximou -se delicadamente e falou em voz baixa: – André, a excessiva contemplação dos resultados pode prejudicar o trabalhador. Em ocasiões como esta, a vaida de costuma acordar dentro de nós, fazendo -nos esquecer o Senhor. Não olvides que todo o bem procede d’Ele, que é a luz de nossos corações. Somos seus instrumentos nas tarefas de amor. O servo fiel não é aquele que se inquieta pelos resultados, nem o que pe rmanece enlevado na contemplação deles, mas justamente o que cumpre a vontade |
André Luiz | divina do Senhor e passa adiante. Aquelas palavras não poderiam ser mais significativas, O generoso mentor voltou ao serviço a que se entregara, junto de outros irmãos, e, valend o-me do amoroso aviso, dirigi -me à reconhecida senhora, acentuando: – Minha amiga, agradeça a Jesus e não a mim, que sou apenas obscuro servidor. Quanto ao mais, não se impressione em demasia com a visão dos aspectos exteriores; volte o poder visual para d entro de si mesma, para que possa consagrar ao Senhor da Vida os sublimes dons da visão. Notei que a ouvinte se surpreendia com as minhas palavras, que lhe pareceram, talvez, inoportunas e transcendentes, mas, novamente firme na compreensão do dever, acerq uei-me do enfermo próximo. Tratava -se dum infeliz irmão que falecera na Gamboa, vitimado pelo, câncer. Toda a região facial apresentava -se com horrífico aspecto. Apliquei os passes dê reconforto, ministrando pensamentos e palavras de bom ânimo, e reparei q ue o pobrezinho se sentia tomado de considerável melhora. Prometi -lhe interesse amigo, a fim de internar -se em alguma casa espiritual de tratamento, recomendando que preparasse a vida mental para colher semelhante benefício, oportunamente. Em seguida, aten di a dois ex -tuberculosos do Encantado, a uma senhora que desencarnara em Piedade, em conseq uência de um tumor maligno, e a um rapaz de Olaria, que se desprendera num choque operatório. Nenhum destes quatro últimos, contudo, manifestou qualquer alivio. Per sistiam as mesmas indisposições orgânicas, os mesmos fenômenos psíquicos de sofrimento. Terminada a tarefa que me fora cometida, reuni -me ao nosso instrutor e Vicente, que me esperavam a um canto da sala. – As atividades de assistência – exclamou Aniceto, cuidadoso – se processam conforme observam aqui. Alguns se sentem cura dos, outros acusam melhoras e a maioria parece continuar impermeável ao serviço de auxílio. O que nos deve interessar, todavia, é a semeadura do bem. A germinação, o desenvolvimento, a flor e o fruto pertencem ao Senhor. Vicente, que se mostrava fortemente impressionado, observou: – O número de entidades perturbadas espanta. Vemo -las, em diversos graus de desequilíbrio, desde “Nosso Lar” até a Crosta. Aniceto sorriu e falou em tom grave: – Devemos esmagadora percentagem desses padecimentos à falta de educação religiosa. Não me refiro, porém, àquela que vem do sacerdócio ou que parte da boca de uma criatura para os ouvidos de outra. Refiro -me à educação religiosa, íntima e profunda, que o homem nega sistematicamente a si mesmo. |
André Luiz | Mente enferma Observando e trabalhando sempre, Aniceto considerou: – Aqui não comparecem apenas os desencarnados enfermos. Reparem os encarnados, igualmente. Entre o nosso círculo e a assembl eia dos irmãos corporificados, a percentagem de trabalhadores em relação ao número de doentes e necessitados é quase a mesma. Designando um cavalheiro aprumado e bem posto, que se mantinha em palestra com o senhor Bentes, doutrinador naquele grupo, acrescentou: – Vejam este amigo rodeado de sombra, em conversação como colaborador de nossa irmã Isabel. Ouçam -lhe a palavra e, depois, ajuízem. Com efeito, o cavalheiro indicado rodeava -se de pequenas nuvens, mormente ao longo do cérebro. Fixando nele a atenção, eu o ouvia distin tamente: – Há muito – asseverava com ênfase – frequen to as reuniões espiritistas, à procura de alguma coisa que me satisfaça; no entanto – e sorriu irônico –, ou a minha infelicidade é maior que a dos outros ou estamos diante de mistificação mundial. Atento à respeitosa atitude do orientador encarnado, prosseguia, orgulhoso: – Tenho estud ado muitíssimo, não me furtando ao crivo da razão rigorosa. Já devorei extensa literatura relativa à sobrevivência humana e, todavia, nunca obtive uma prova. O Espiritismo está cheio de teses sedutoras, mas o terreno se mostra cheio de dúvidas. A obra de K ardec, inegavelmente, representa extraordinária afirmaçã o filosófica; entretanto, encontramos com Richet um acervo de perspectivas novas. A metapsíquica corrigiu muitos voos da imaginação, trazendo à análise pública observações mais profundas sobre os desconhecidos poderes do homem. No exame dessas verdades cie ntíficas, o mediunismo foi reduzido em suas proporções. Precisamos dum movimento de racionalização, ajustando os fenômenos a critério adequado. Todavia, meu caro Bentes, vivemos em paisagem de mistificações sutis, distantes das demonstrações exatas. A essa altura, o interlocutor, muito calmo e seguro na fé, interveio, considerando: – Concordo, Dr. Fidélis, em que o Espiritismo não deva fugir a toda |
André Luiz | espécie de considerações sérias; contudo, creio que a doutrina é um conjunto de verdades sublimes, que se dirigem, de preferência, ao coração humano. É impossível auscultar -lhe a grandeza divina com a nossa imperfeita faculdade de observação, ou recolher -lhe as ág uas puras com o vaso sujo dos nossos raciocínios viciados nos erros de muitos milênios. Ao demais, temos aprendido que a revelação de ordem divina não é trabalho mecânico em leis de menor esforço. Lembremos que a missão do Evangelho, com o Mestre, foi prec edida por um esforço humano de muitos séculos. Antes de morrerem os cristãos nos circos do martírio, quantos precursores de Jesus foram sacrificados? Primeiramente, devemos construir o receptáculo; em seguida, alcançaremos a bênção. A Bíblia, sagrado livro dos cristãos, é o encontro da experiência humana, cheia de suor e lágrimas, consubstanciada no Velho Testamento, com a resposta celestial, sublime e pura, no Evangelho de Nosso Senhor. O cavalheiro, que respondia pelo nome de Dr. Fidélis, sorria de modo vago, entre a ironia e a vaidade ofendida. Bentes, contudo, não perdeu a oportunidade e continuou: – Se todo serviço sério da existência humana é alguma coisa de sagrado aos nossos olhos, que dizer da expressão divina no trabalho planetário? E considerando a essência do serviço na organização do mundo, que seria de nós se um punhado de Espíritos amigos e sábios nos arrebatass em à visão ampla de orbes superiores, impelindo -nos para eles, precipitadamente, tão só pelo fato de nos dispensarem, como indivíduos; uma estima santa? Estaríamos preparados para a mudança radical? Saberemos o que venha a ser a vida num orbe superior? Ter emos trabalhado bastante para entender os divinos desígnios? E a Terra? E as nossas milenárias dívidas para com o planeta que nos tem suportado as imperfeições? Como residir nos andares mais altos, sem drenar os pântanos que jazem em baixo? Estas considera ções toma m-se imprescindíveis no exame de argumentação como a sua, porquanto não poderemos ajuizar, com precisão, as correntes generosas de um rio caudaloso, observando tão somente as gotas recolhidas no dedal das nossas limitações. O pesquisador renitente acentuou a expressão irônica do rosto e revidou: – Você fala como homem de fé, esquecendo que meu esforço se dirige à razão e à ciência. Quero referir -me às ilações inevitáveis da consulta livre, às farsas mediúnicas de todos os tempos. Você está informad o de que cientistas inúmeros examinaram as fraudes dos mais célebres aparelhos do mediunismo, na Europa e na América. Ora, que esperar de uma doutrina confiada a mistificadores continentais? Bentes respondeu, muito sereno e ponderado: – Está enganado, meu amigo. Estaríamos laborando em erro grave, se colocássemos toda a responsabilidade doutrinária nas organizações mediúnicas. Os médiuns são simples colaboradores do trabalho de espiritualização. Cada um responderá pelo que fez das possibilidades recebidas, como também nós seremos compelidos a contas necessárias, algum dia. Não |
André Luiz | poderíamos cometer o absurdo de atribuir a concentração de todas as verdades divinas somente na cabeça de alguns homens, candidatos a novos cultos de adoração. A doutrina, Dr. Fidélis, é uma fonte sublime e pura, inacessível aos pruridos individualistas de qualquer de nós, fonte na qual cada companheiro deve beber a água da renovação própria. Quanto às fraudes mediúnicas a que se refere, é forçoso reconhecer que a pretensa infalibilidad e científica tem procurado converter os mais nobres colaboradores dos desencarnados em grandes nervosos ou em simples cobaias de laboratório. Os pesquisadores, atualmente batizados como metapsiquistas, são estranhos lavradores que enxameiam no campo de ser viço sem nada produzirem de fundamentalmente útil. Inclina m-se para a terra, contam os grãos de areia e os vermes invasores, determinam o grau de calor e estudam a longitude, observam as disposições climáticas e anotam as variações atmosféricas, mas, com g rande surpresa para os trabalhadores sinceros, desprezam a semente. O interlocutor deixou de sorrir e observou: – Vamos ver, vamos ver... Espero a mensagem dos meus com os sinais iniludíveis da sobrevivência, após a morte... Aniceto nos tocou de leve, e fa lou: – Repararam como este homem traz a mente enfermiça? É um dos curiosos doentes, encarnados. Tem vasta cultura e, todavia, como traz o sentimento envenenado, tudo quanto lhe cai nos raciocínios participa da geral intoxicação. É pesquisador de superfície , como ocorre a muita gente. Tudo espera dos outros, examina seu semelhante, mas não ausculta a si mesmo. Quer a realização divina sem o esforço humano; reclama a graça, formulando a exigência; quer o trigo da verdade, sem participar da semeadura; espera a tranq uilidade pela fé, sem dar -se ao trabalho das obras; estima a ciência, sem consultar a consciência; prefere a facilidade, sem filiar-se à responsabilidade, e, vivendo no torvelinho de continuadas libações, agarrado aos interesses inferiores e à satisfação dos sentidos físicos, em caráter absoluto, está aguardando mensagens espirituais... Estávamos admirados, ante as conclusões intere ssantes do instrutor amigo. Vicente, que se mantinha sob forte impressão, perguntou: – Afinal de contas, que deseja este homem? Aniceto sorriu e respondeu: – Também ele teria imensas dificuldades para responder. Para nós outros, Vicente, o Dr. Fidélis é um desses enfermos que ainda não se dispuseram a procurar o alivio, pelo demasiado apego à sensação. |
André Luiz | Aprendendo sempre Segundo informações de Aniceto, faltava mais de uma hora para o início da preleção evangélica, sob a responsabilidade do senhor Bent es, na esfera dos frequen tadores encarnados, mas o movimento de serviço espiritual tornara -se intensíssimo. Reunia m-se ali, para olhos humanos, trinta e cinco individualidades terrestres e, no entanto, em nosso círculo, o número de necessitados excedia de duas centenas, porquanto, agora, a assembl eia estava acrescida de muitas entidades que formavam o séquito perturbador da maioria dos aprendizes ali congregados. Para elas, organizou -se uma divisão especial, que me pareceu constituída por elementos de maior vigilância, visto chegarem, quase obrigatoriamente, acompanhando os que buscavam o socorro espiritual, sem a indicação dos orientadores em serviço nas vias públicas. A movimentação era enorme e o tempo era escasso para qualquer observação, sem movimento a tivo. Todos os servidores da casa se mantinham a postos, desenvolvendo a melhor atenção. Reparei que num ângulo da grande mesa havia numerosas indicações de receituário e assistência. Os mais variados nomes ali se enfileiravam. Muitas pessoas pediam consel hos médicos, orientação, assistência e passes. Quatro facultativos espirituais se moviam diligentes e, secundando -lhes o esforço humanitário, quarenta cooperadores diretos iam e vinham, recolhendo informações e enriquecendo pormenores. Aproximamo -nos do gr ande número de papéis nominados e, enquanto curiosamente buscava examiná -los, Aniceto explicou: – Temos aqui a indicação das pessoas que se afirmam necessitadas de amparo e socorro imediato. – Mas recebem elas tudo quanto pedem? – indagou Vicente, curioso. Nosso mentor sorriu e respondeu: – Recebem o que precisam. Muitos solicitam a cura do corpo, mas somos forçados a estudar até que ponto lhes podemos ser úteis, no particularismo dos seus desejos; outros reclamam orientações várias, obrigando -nos a equilibrar nossa cooperação, de modo a lhes não tolher a liberdade individual. A existência terrestre é um curso ativo de preparação espiritual e, quase sempre, não faltam na escola os alunos oci osos, que perdem |
André Luiz | o tempo ao invés de aproveitá -lo, ansiosos pelas realizações mentirosas do menor esforço. Desse modo, no capítulo das orientações, a maior parte dos pedidos é desassisada . A solicitação de terapêutica para a manutenção da saúde física, pel os que de fato se interessem pelo concurso espiritual, é sempre justa; todavia, no que concerne a conselhos para a vida normal, é imprescindível muita cautela de nossa parte, diante das requisições daqueles que se negam voluntariamente aos testemunhos de conduta cristã. O Evangelho está cheio de sagrados rotei ros espirituais e o discípulo, pelo menos diante da própria consciência, deve considerar -se obrigado a conhecê -los. O instrutor amigo fez pequena pausa, mudou a inflexão de voz, como para acentuar fortemente as palavras, e considerou: – Possivelmente, você s objetarão que toda pergunta exige resposta e todo pedido merece solução; entretanto, nesse caso de esclarecer determinadas solicitações dos companheiros encarnados, devemos recorrer, muitas vezes, ao silêncio. Como recomendar humildade àqueles que a pregam para os outros; como ensinar a paciência aos que a aconselham aos semelhantes, e como indicar o bálsamo do trabalho aos que já sabem condenar a ociosidade alheia? Não seria contra ssenso? Ler os regulamentos da vida para os cegos e para os ignorantes é obra meritória, mas, repeti -los aos que já se encontr am plenamente informados, não será menosprezo ao valor do tempo? Alma alguma, nas diversas confissões religiosas do Cristianismo, recebe noticias de Jesus, sem razão de ser. Ora, se toda condição de trabalho edificante traduz compromisso da criatura, todo conhecimento do Cristo traduz responsabilidade. Cada aprendiz do Mestre, portanto, está no dever de observar a consciência, conferindo -lhe os alvitres profundos com as disposições evangélicas. Vicente, que escutava com grande interesse, aventou: – No entan to, ousaria lembrar os que formulam semelhantes pedidos levianamente... – Sim – elucidou Aniceto, sorrindo –, mas nós não poderemos copiar -lhes o impulso. Os desencarnados e os encarnados, que ainda abusam das possibilidades do intercâmbio entre as esferas visíveis e invisíveis ao homem comum, pagarão alto preço pela invigilância. – Neste caso – perguntei, respeitoso –, como corresponder aos pedidos de orientação? – Alguns, raros – esclareceu nosso orientador –, merecem o concurso da nossa elucidação verbal , na hipótese de se referirem aos interesses eternos do Espírito, quando isso nos seja possível; entretanto, quase sempre é indispensável nada responder de maneira direta, auxiliando os interessados na pauta de nossos recursos, em silêncio, mesmo porque, não temos grande tempo para relembrar a irmãos encarnados certas obrigações que lhes não deviam escapar da memória, para felicidade de si mesmos. Calou -se por momentos o bondoso instrutor, considerando em seguida, interessado em nos subtrair quaisquer dúvidas: – Muitas entidades desencarnadas estimam o fornecimen to de palpites |
André Luiz | para as diversas situações e dificuldades terrestres, mas esses pobres amigos estacionam desastradamente em questões subalternas, incapazes de uma visão mais alta, em face dos horizontes infinitos da vida eterna, convertendo -se em meros escr avos de mentalidades inferiores, encarnadas na Terra. Esquecem que o nosso interesse imediato, agora, deve ser, acima de todos, aquele que se refira à espiritualidade superior. Nossos irmãos inquietos, que forneçam palpites a preguiçosas mentes encarnadas, sobre assuntos referentes à responsabilidade justa e necessária do homem, devem fazê -lo de própria conta. – Que acontece, então? – perguntou Vicente, curioso. Nosso mentor, contudo, respondeu com outra pergunta: – Que acontece ao homem de responsabilidade que se põe a brincar? Nesse instante, um dos clínicos espirituais, aproximando -se, foi gentilmente saudado por Aniceto, que lhe disse, depois de apresentar -nos: – Disponha da nossa colaboração humilde. Aqui estamos na qualidade de médicos itinerantes, pro ntos ao concurso ativo. – Vêm de “Nosso Lar”? – indagou o novo companheiro, respeitosamente. – Sim – respondeu Aniceto, prestativo. – Pois bem – considerou ele – se possível, estimarei receber -lhes o auxílio, após a reunião, para dois casos urgentes. Trata -se de uma jovem desencarnada hoje e de um agonizante, meu amigo. – Sem dúvida – acentuou nosso orientador, solícito –, aguardaremos suas indicações. |
André Luiz | No trabalho ativo A interpretação de Bentes, obedecendo à inspiração de um emissário de nobre posiç ão, presente à assembl eia, era recebida com respeito geral, no circulo das entidades desencarnadas. Na esfera dos encarnados, porém, não se notava o mesmo traço de harmonia. Observava -se apreciável instabilidade de pensamento. A expectativa ansiosa dos pre sentes perturbava a corrente vibratória. De quando em quando, surpreendíamos determinados desequilíbrios, que afetavam, particularmente, a organização mediúnica de Dona Isabel e a posição receptiva do comentarista, que parecia perder “o fio das id eias”, ta l qual se diria na linguagem comum. Colaboradores ativos restabeleciam o ritmo, quanto possível. Reparamos que alguns irmãos encarnados se mantinham irrequietos, em demasia. Mormente os mais novos em conhecimentos doutrinários exibiam enorme irresponsabili dade. A mente lhes vagava muito longe dos comentários edificantes. Via m-se-lhes, distintamente, as imagens mentais. Alguns se prendiam aos quefazeres domésticos, outros se impacientavam por não lograrem a realização imediata dos propósitos que os haviam le vado até ali. Aniceto, que não perdia ocasião de prestar -nos esclarecimentos novos, considerou, discreto: – Muitos estudiosos do Espiritismo se preocupam com o problema da concentração, em trabalhos de natureza espiritual. Não são poucos os que estabelecem padrão ao aspecto exterior da pessoa concentrada, os que exigem determinada atitude corporal e os que esperam resultados rápidos nas atividades dessa ordem. Entretanto, quem diz concentrar, forçosamente se refere ao ato de congregar alguma coisa. Ora, se os amigos encarnados não tomam a sério as responsabilidades que lhes dizem respeito, fora dos recintos de prática espiritista, se, porventura, são cultores da leviandade, da indiferença, do erro deliberado e incessante, da teimosia, da inobservância intern a dos conselhos de perfeição cedidos a outrem, que poderão concentrar nos momentos fugazes de serviço espiritual? Boa concentração exige vida reta. Para que os nossos pensamentos se congreguem uns aos outros, fornecendo o potencial de nobre união para o be m, é indispensável o trabalho preparatório de atividades mentais na meditação de ordem superior. A atitude íntima de relaxamento, ante as lições evangélicas recebidas, não pode conferir ao crente, |
André Luiz | ou ao cooperador, a concentração de forças espirituais no s erviço de elevação, tão só porque estes se entreguem, apenas por alguns minutos na semana, a pensamentos compulsórios de amor cristão. Como v eem , o assunto é complexo e demanda longas considerações e ensinamentos. Reparei com mais atenção os circunstantes encarnados. Não fosse o devotamento dos colaboradores do nosso plano, tornar -se-ia impossível qualquer proveito concreto. Isidoro e outros amigos devotados trabalhavam com ardor, despertando alguns dorminhocos e reajustando o pensamento dos invigilantes, p ara neutralizar determinadas influências nocivas. Eu reconhecia que os benefícios imediatos da doutrinação de Bentos eram muito mais visíveis entre os desencarnados. No grupo destes, não havia um só que não recebesse consolações diretas e sublime conforto. Finda a interpretação, pouco antes de se entregar Dona Isabel ao trabalho do receituário, observei que uma senhora desencarnada se aproximara de Isidoro, pedindo, emocionada: – Ser-lhe-á possível, meu irmão, entender -se por mim com os nossos orientadores quanto à possibilidade de me comunicar diretamente com a minha filha, presente à reunião? Estou certa de que, com a permissão devida, nossa Isabel me atenderá a angústia materna. O interpelado mostrou sincero desejo de ser útil, mas, depois de trocar algum as palavras com o instrutor mais graduado da reunião, que se colocara entre a médium e o doutrinador, veio trazer a resposta, algo constrangido, com grande surpresa para mim: – Minha irmã – disse ele –, o nosso nobre Anselmo não julga viável o seu pedido. Asseverou que sua filhinha ainda não está em condições de receber essa bênção. Ela tem necessidade de testemunhar, agora, o que aprendeu do seu exemplo, no mundo, e precisa permanecer no campo da oportunidade, sem repousar indevidamente nos seus braços. E como a senhora denotasse tristeza, Isidoro continuou em tom fraternal: – Não somente por isso, minha amiga, nosso instrutor se vê forçado a desatender. A medida traria inconveniente grave para o seu sentimento maternal. No estado evolutivo em que se encont ra, e considerando o velho hábito adquirido, a filhinha se agarraria excessivamente ao seu auxílio. Prender -se-ia à mãezinha afetuosa e sensível, e talvez a irmã se visse perturbada em sua nova carreira espiritual. Ela precisa estar mais livre para testemu nhar, enquanto o seu coração deve permanecer em liberdade, por nobre merecimento conquistado ao preço do seu suor e lágrimas, quando na Terra. Considerando, embora, o caráter sagrado do amor em sua feição maternal, nossos orientadores não podem conceder à sua filha o direito de perturbá -la. Compreende? Não se atormente com esta impossibilidade transitória. Lembre -se de que todos somos filhos de Deus. O Senhor terá recursos para atender à jovem, em seu lugar. Quanto ao mais, alegremo -nos em nossos serviços. Recorde que o auxílio não se verificará pelo processo direto, mas podemos recorrer ao método indireto. Quem sabe? Amanhã, |
André Luiz | possivelmente, poderá encontrar -se com sua filha, em sonho. A interpelada sorriu, confortada, e obtemperou: – É verdade. Devo compreen der a nova situação. Nesse instante, acercou -se de Isidoro uma entidade amiga, que solicitou: – Meu caro, estimaria suas providências junto dos receitistas, para que forneçam novas indicações ao Amaro. Meu sobrinho necessita de amparo à saúde física. O esp oso espiritual de Isabel tomou uma expressão significativa e respondeu: – Não posso, meu amigo, não posso. Se Amaro pedir e os receitistas cederem, tudo estará muito bem; mas você não ignora que o nosso doente é muito rebelde. Já lhe providenciei a obtenção de conselhos médicos do nosso plano, por cinco vezes, sem que ele correspondesse aos nossos esforços. Não se resolve a adquirir os remédi os indicados, e quando os obtém, por obséquio de amigos, despreza os horários e julga -se superior ao método. Critica mordazmente as indicações obtidas e serve -se delas com desprezo. Naturalmente não estou agastado com isso, como adulto que se não aborrece com as brincadeiras de uma criança; mas você compreende que estamos lidando com um material muito sagrado e não há tempo para conviver com os que estimam a brincadeira. Além disso, não será caridade o ato de dar aos que não querem receber. Isidoro falava com uma inflexão de bondade fraternal, que afastava todos os característicos da franqueza contundente. Compreendi que, para atender a tanta gente e movimentar -se entre tantos propósitos heterogêneos, não seria possível tratar os assuntos de outro modo. O serv iço prosseguia com enorme demonstração educativa para Vicente e para mim. O esforço dos clínicos espirituais, aliado à abnegação da intermediária, comovia -me o coração. Era necessário, de fato, grande renúncia para atender ao trabalho compacto e numeroso, no setor de assistência aos encarnados, porque poucos fr equen tadores do grupo pareciam manter atitude correspondente à sublime dedicação fraternal em nome do Mestre. Aniceto, porém, adivinhando meus pensamentos, falou com bondade: – Um dia, André, você com preenderá, com Jesus, que melhor é servir que ser servido; mais belo é dar que receber. |
André Luiz | Pavor da morte Numerosas explicações do orientador atendia m-me às indagações naturais; no entanto, restava aprender alguma coisa. Por que motivo se reuniam ali tantos desencarnados? Já que recebiam assistênc ia espiritual, não poderiam congregar -se em lugares igualmente espirituais? Respeitosamente, interroguei Aniceto nesse sentido. – De fato, André – respondeu o generoso mentor –, a maioria dos desencarnados recebe esclarecimentos justos em nossa esfera de a ção. Você mesmo, nos primórdios da nova experiência espiritual, não foi conduzido ao ambiente de nossos amigos corporificados para o necessário encaminhamento. Grande número de criaturas, porém, na passagem para cá, sente m-se possuídas de “doentia saudade do agrupamento”, como acontece, noutro plano de evolução, aos animais, quando sentem a mortal “saudade do rebanho”. Para fortalecer as possibilidades de adaptação dos desencarnados dessa ordem ao novo “habitat”, o serviço de socorro é mais eficiente, ao contato das forças magnéticas dos irmãos que ainda se encontram envolvidos nos círculos carnais. Esta sala, em momentos como este, funciona como grande incubadora de energias psíquicas, para os serviços de aclimação de certas organizações espirituais à vida nova. E, designando a grande assembl eia de necessitados, continuou: – Os irmãos, nas condições a que me refiro, ouve m-nos a voz, consola m-se com o nosso auxilio, mas o calor humano está cheio dum magnetismo de teor mais significativo, para eles. Com semelh ante contato , experimentam o despertar de forças novas. Por isso, o trabalho de cooperação, em templos desta espécie, oferece proporções que você, por agora, não conseguiria imaginar. Não observou os preguiçosos, os dorminhocos e invigilantes que vieram co lher benefícios nesta casa? Pois eles também deram alguma coisa de si... Deram calor magnético, irradiações vitais proveitosas aos benfeitores deste santuário doméstico, que manipulam os elementos dessa natureza, distribuindo -os em valiosas combinações flu ídicas às entidades combalidas e inadaptadas. E, sorrindo, concluiu, bondoso: – Tudo tem algum proveito, André. Nosso Pai nada cria em vão. Terminada a reunião com benefícios gerais, que não me cabe descrever |
André Luiz | pormenorizadamente, atendeu Aniceto ao facultat ivo desejoso de aproveitar -lhe o concurso nobre, junto aos clientes. – Grande número de vezes – exclamou o receitista do grupo de Dona Isabel, como a prestar informações a Vicente e a mim – não só ministramos medicação aos corpos doentes, mas também orient amos os desencarnados que, no curso da moléstia, se encontram sob nossa assistência. – E são sempre muitos? – indaguei. – Número crescente – elucidou, atencioso. Há ocasiões em que contamos com a cooperação de amigos ou parentes espirituais dos enfermos; mas, na maioria dos casos, somos forçados a agir por nós mesmos. Felizmente, quase nunca estamos sem auxiliares dedicados e ativos. Há companheiros que se consagram a cuidar de tuberculosos, cegos, aleijados, leprosos, perturbados e moribundos, isoladamente. São eles nossos devotados colaboradores em todas as situações. Puséramo -nos a caminho e, a breves minutos, estacionávamos diante dum edifício de vastas proporções. O colega, gentil, conduz iu-nos ao interior de espaçoso necrotério, onde defrontamos um quadro interessante, O cadáver de uma jovem, de menos de trinta anos, ali jazia gelado e rígido, tendo a seu lado uma entidade masculina, em atitude de zelo. Com assombro, notei que a desencarn ada estava unida aos despojos. Parecia recolhida a si mesma, sob forte impressão de terror. Cerrava as pálpebras, deliberadamente, receosa de olhar em torno. – Terminou o processo de desligamento dos laços fisiológicos – exclamou o facultativo atento –, ma s a pobrezinha há seis horas que está dominada por terrível pavor. E apontando o cavalheiro desencarnado, que permanecia junto dela, cuidadoso, o receitista esclareceu: – Aquele é o noivo que a espera, há muito. Aproximamo -nos um tanto e ouvimo -lo exclamar carinhosamente: – Cremilda! Cremilda! Vem! Abandona as vestes rotas. Fiz tudo para que não sofresse mais... Nossa casinha te aguarda, cheia de amor e luz!... A jovem, todavia, cerrava os olhos, demonstrando não querer vê -lo. Notava -se, perfeitamente, que seu organismo espiritual permanecia totalmente desligado do vaso físico, mas a pobrezinha continuava estendida, copiando a posição cadavérica, tomada de infinito horror. Aniceto, que tudo pareceu compreender num abrir e fechar de olhos, fez leve sinal ao r apaz desencarnado, que se aproximou comovido. – É preciso atendê -la doutro modo – disse o nosso orientador, resoluto –, vejo que a pobrezinha não dormiu no desprendimento e mostra -se amedrontada por falta de preparação espiritual. Não convém que o amigo se apresente a ela já, já... Não obstante o amor que lhe consagra, ela não poderia revê -lo sem terrível comoção, neste instante em que a mente lhe flutua sem rumo... – Sim – considerou ele, tristemente –, há seis horas chamo -a sem cessar, identificando -lhe o terror. |
André Luiz | Redarg uiu Aniceto, conselheiral: – Ausência de preparação religiosa, meu irmão. Ela dormirá, porém, e, tão logo consiga repouso, entregá -la-emos aos seus cuidados. Por enquanto, conserve -se a alguma distância. E fazendo -se acompanhar do facultativ o, que assistira espiritualmente a jovem nos últimos dias, aproximou -se da recém -desencarnada, falando com inflexão paternal: – Vamos, Cremilda, ao novo tratamento. Ouvindo -o, a moça abriu os olhos espantadiços e exclamou: – Ah, doutor, graças a Deus! Que pesadelo horrível! Sentia -me no reino dos mortos, ouvindo meu noivo, falecido há anos, chamar -me para a Eternidade!... – Não há morte, minha filha! – objetou Aniceto, afetuoso – creia na vida, na vida eterna, profunda, vitoriosa! – É o senhor o novo médico ? – indagou, confortada. – Sim, fui chamado para aplicar -lhe alguns recursos em bases magnéticas. Torna -se indispensável que durma e descanse. – É verdade... – tornou ela de modo comovente –, estou muito cansada, necessitando de repouso... Recomendou -nos o instrutor, em voz baixa, prestássemos auxílio, em atitude íntima de oração, e, depois de conservar -se em silêncio por instantes, ministrou -lhe o passe reconfortador. A jovem dormiu quase imediatamente. Deslocou -a Aniceto, afastando -a dos despojos, com o z elo amoroso dum pai, e, chamando o noivo reconhecido, entregou -a carinhosamente. – Agora, poderá encaminhá -la, meu irmão. O rapaz agradeceu com lágrimas de júbilo e vi -o retirar -se de semblante iluminado, utilizando a volitação, a carregar consigo o fardo suave do seu amor. Nosso mentor fixou um gesto expressivo e falou: – Pela bondade natural do coração e pelo espontâneo cultivo da virtude, não precisará ela de provas purgatoriais. É de lamentar, contudo, não se tivesse preparado na educação religiosa dos pensamentos. Em breve, porém, ter-se-á adaptado à vida nova. Os bons não encontram obstáculos insuperáveis. E, desejoso talvez de consubstanciar a síntese da lição, rematou: – Como v eem , a id eia da morte não serve para aliviar, curar ou edificar verdadeira mente. É necessário difundir a id eia da vida vitoriosa. Aliás, o Evangelho já nos ensina, há muitos séculos, que Deus não é Deus de mortos e, sim, o Pai das criaturas que vivem para sempre. |
André Luiz | Máquina divina Não se passaram muitos minutos e estávamos a o lado do agonizante, cuja situação preocupava o clínico espiritual. Era um cavalheiro de sessenta anos presumíveis, que a leucemia aniquilava morosamente. – Há muitos dias se encontra em coma – explicou o facultativo –, mas temos necessidade de mais forte auxílio magnético, para facilitar o desprendimento. No aposento, além de duas senhoras desencarnadas – a mãe do agonizante e uma parenta próxima –, via m-se familiares encarnados, dando mostras de grande aflição. Nosso orientador examinou o enfermo detidam ente e sentenciou: – Nada resta senão a necessidade de concurso para o desligamento final. Aniceto, a seguir, recomendou observássemos o moribundo com atenção. Concentrando todas as minhas possibilidades, fixei o enfermo prestes a desencarnar. Notei, com m inúcias, que a alma se retirava lentamente através de pontos orgânicos insulados. Assombrado, verifiquei que, bem no centro do crânio, havia um foco de luz mortiça, candelabro aceso às ondulações brandas do vento. Enchia toda a região encefálica, despertan do-me profunda admiração. – A luz que você observa – disse o instrutor amigo – é a mente, para cuja definição essencial não temos, por agora, conceituação humana. Notando minha estranheza, Aniceto colocou -me a destra na fronte, transmitindo -me vigoroso inf luxo magnético, e acentuou: – Repare a máquina divina do homem, o tabernáculo sagrado que o Senhor permitiu se formasse na Terra para sublime habitação temporária do espírito. Agora, André, não está você diante duma demonstração anatômica da ciência terres tre, examinando carne morta e músculos enrijecidos. Observe agora! O olho mortal não poderá contemplar o que se encontra à sua vista neste instante. O microscópio é ainda pobre, não obstante representar uma nobre conquista para a limitada visão humana. A cooperação magnética do querido mentor modificara a cena e fui compelido a concentrar todas as minhas energias, a fim de não inutilizar a observação pelo golpe do espanto. A luz mental, embora fosca, tornara -se mais nítida e o corpo do |
André Luiz | moribundo agigantou -se, oferecendo -me espetáculo surpreendente aos olhos ansiosos. Parecia -me o corpo, agora, maravilhosa usina nos mais íntimos detalhes. O quadro científico era simplesmente estupefativo. Identificava, em grandes proporções, os nove sistemas de órgãos da máqu ina humana; o arcabouço ósseo, a musculatura, a circulação sang uínea, o aparelho de purificação do sangue consubstanciado nos pulmões e nos rins, o sistema linfático, o maquinismo digestivo, o sistema nervoso, as glândulas hormonais e os órgãos dos sentido s. Tal revelação histológica era diferente de tudo que eu poderia sonhar nos meus trabalhos de medicina. A circulação do sangue semelhava -se a movimento de canais vitalizadores daquele pequeno mundo de ossos, carne, água e resíduos. Milhões de organismos microscópicos iam e vinham na corrente empobrecida de glóbulos vermelhos. Presenciava a passagem de formas esquisitas, à maneira de minúsculas embarcações carregadas de bactérias mortíferas. Elementos maiores da flora microbiana transformava m-se em pequenin os barcos hospedando feras minúsculas, às centenas. Invadiam todos os núcleos organizados. Os órgãos, como os pulmões, o fígado e os rins, estavam sendo assaltados, irremedia velmente, por incalculável quantidade de sabotadores infinitesimais. E à medida qu e se consolidavam os micróbios invasores, em determinadas regiões celulares, alguma coisa se destacava, lentamente, da zona atacada, como se um molde sempre novo fosse expulso da forma gasta e envelhecida, reconhecendo eu, desse modo, que a desencarnação s e operava através de processo parcial, facultando -me ilações preciosas. Reparei que algumas glândulas faziam desesperado esforço para enviar aos centros invadidos determinadas porções de hormônios, que eram incontinenti absorvidos pelos elementos letais. O plasma sanguíneo figurava -se líquido estranho e gangrenoso. Pela excessiva movimentação da onda mental, observei que o moribundo tentava readquirir a direção dos fenômenos orgânicos, mas em vão. Todos os complexos celulares atritavam entre si e as bactéri as pareciam gozar o direito de multiplicação crescente e festiva. – Está vendo a máquina divina, formada pelo molde espiritual preexistente? – perguntou Aniceto, compreendendo -me a profunda admiração. – O corpo do homem encarnado é um tabernáculo e uma bên ção. Nesta hecatombe angustiosa de uma existência, pode você reparar que todos os movimentos do corpo estão subordinados à administração da mente. O organismo vivo, André, representa uma conquista laboriosa da Humanidade terrestre, no quadro de concessões do Eterno Pai. Pode você, agora, identificar os movimentos da matéria viva. Cada órgão é um departamento autônomo na esfera celular, subordinado ao pensamento do homem. Cada glândula é um centro de serviços ativos. Há muita afinidade entre o corpo físico e a máquina moderna. São ambos impulsionados pela carga de combustível, com a diferença de que no homem a combustão química obedece ao senso espiritual que dirige a vida organizada. É na mente que temos o governo dessa usina maravilhosa. Não possuímos, aí, tão somente o caráter, a razão, a memória, a direção, o |
André Luiz | equilíbrio, o entendimento; mas, também, o controle de todos os fenômenos da expressão corpórea. Na sede mental e, cons equen temente, no cérebro, temos todos os registros de distribuição dos princípios vitais aos núcleos celulares, inclusive a água e o açúcar. Os centros metabólicos são grandes oficinas de trabalho incessante. A mente humana, ainda que indefinível pela conceituação científica limitada, na Terra, é o centro de toda manifestação vital no planeta. Cada órgão, cada glândula, meu amigo, integra o quadro de serviço da máquina sublime, construída no molde sutil do corpo espiritual preexistente e, por isso mesmo, chegará o tempo em que a ciência reconhecerá qualquer abuso do homem como ofensa ca usada a si mesmo. A usina humana é repositório de forças elétricas de alto teor construtivo ou destrutivo. Cada célula é minúsculo motor, trabalhando ao impulso mental. Aniceto calou -se por momentos e, enquanto eu via, aterrado, os mais estranhos fenômenos microbianos no corpo do moribundo, volveu ele à palavra educativa: – Vemos aqui um irmão no momento da retirada. Repare a incapacidade dele para governar as células em conflito. A corrente sang uínea transformou -se em veículo de invasores mortíferos, que n ão encontraram qualquer fortificação na defensiva. Observe e identificará milhões de unidades da tuberculose, da lepra, da difteria, do câncer, que até agora estavam contidos nos porões da atividade fisiológica, pela defesa organizada, e que se multiplicam assustadoramente, de par com outros micróbios tão prolíferos quão terríveis. A nutrição foi interrompida. Não há possibilidade de novos suprimentos hormonais. O agonizante retrai -se aos poucos e ainda não abandonou totalmente a carne, por falta de educaçã o mental. Vê -se pelo excesso de intemperança das células, sobre as quais não exerce nem mesmo um controle parcial, que este homem viveu bem distante da disciplina de si mesmo. Seus elementos fisiológicos são demasiadamente impulsivos, atendendo muito mais ao instinto que ao movimento da razão concentrada. A falar verdade, este nosso amigo não se está desencarnando, está sendo expulso da divina máquina, onde, pelo que vemos, não parece ter prezado bastante os sublimes dons de Deus. |
André Luiz | A desencarnação de Fe rnando Quando Aniceto retirou a destra da minha fronte, perdi a possibilidade de prosseguir nas observações do infinitesimal. Minha visão abrangia minúcias muito importantes ao interesse comum; entretanto, estava longe daquele poder de apreensão que me t ransmitira o mentor amigo, ao contato do seu elevado potencial magnético. Centralizando minhas energias visuais, analisava ainda o sistema ósseo, o sangue, os tecidos, os humores, mas aquelas batalhas microscópicas haviam desaparecido como por encanto. De qualquer modo, porém, minha surpresa era enorme, porque agora identificava, em mim mesm o, a potencialidade do “raio X”. Aniceto, depois de proporcionar a Vicente o mesmo estudo, movimentava providências novas. No aposento, conservava -se determinado número de parentes aflitos. Um médico encarnado examinava o moribundo, com atenção. Foi aí que as duas entidades que se mantinham no quarto, e que apenas nos haviam dispensado a usual saudação, se aproximaram do nosso instrutor, solicitando -lhe uma cooperação mai s enérgica. – Por favor, nobre amigo – disse a irmã que havia sido genitora do moribundo –, ajude -nos a retirar meu pobre filho do corpo esgotado. Há muitas horas, estamos à espera de alguém que nos possa auxiliar neste transe. Tenho procurado confortá -lo, mas em vão! – acentuou a nobre senhora em tom lastimoso – ele continua num estado de incompreensão dolorosa e terrível. Está absolutamente preso às sensações de sofrimento físico, como esteve ligado, no curso da existência, às satisfações do corpo. Anicet o concordou, acrescentando: – Nota m-se, de fato, grandes lacunas na expressão mental do moribundo. Vê-se que atravessou a vida humana obedecendo mais ao instinto que à razão. Observa m-se-lhe no mundo celular gestos complexos de indisciplina. Poderemos, contudo, ajudá -lo a desvencilhar -se dos laços mais fortes, no que se refere ao círculo carnal. – Será um caridoso obséquio – redarg uiu a genitora, aflita. – A irmã está incumbida de encaminhá -lo? – perguntou o instrutor, compreendendo a magnitude da tarefa. – Precisamos ponderar, quanto a isto, porque o desprendimento integral se verificará dentro de poucos minutos. |
André Luiz | Ela esboçou um gesto triste e respondeu: – Desejaria sacrificar -me ainda um pouco por meu desventurado Fernando, mas apenas obtive permissão para socorrê -lo nos seus últimos instantes. Meus superiores prometem ajudá -lo, mas aconselhara m-me a deixá -lo entregue a si mesmo durante algum tempo. Fernando precisa reconsiderar o passado, identificar os valores que, infelizmente, desprezou. As lágrimas e os remorsos, na solidão do arrependimento, serão portadores de calma ao seu espírito irrefletido. Grande é o meu desejo de conchegá -lo ao coração, regressando aos dias que já se fo ram; todavia, não posso prejudicar, com a minha ternura materna, a marcha do serviço divino. Fernando, em verdade, é filho do meu afeto; contudo, tanto ele como eu, temos contas com a Justiça do Eterno e, no que respeita a mim, estou cansada de agravar os meus débitos. Não devo contrariar os desígnios de Deus. A essa altura do diálogo, interveio o clínico espiritual que nos encaminhara até ali, informando, atencioso: – Nossa amiga tem razão. Fernando não poderá acompanhá -la, mas tão nobre tem sido a interce ssão materna que tenho instruções para conduzi -lo a lugar seguro, a uma casa de socorro, onde poderá colher o melhor proveito do sofrimento, porquanto será asilado em zona vibratória inacessível às influências inferiores e criminosas, embora situada em reg iões baixas. – Já sei – murmurou Aniceto com grave entono –, trata -se de medida muito acertada. Em seguida, acentuou como quem não tinha tempo a perder: – A aflição dos familiares encarnados, aqui presentes, poderá dificultar -nos a ação. Observem como todo s eles emitem recursos magnéticos em benefício do moribundo. De fato, uma rede de fios cinzentos e fracamente iluminados parecia ligar os parentes ao enfermo quase morto. – Tais socorros – tornou Aniceto – são agora inúteis para devolver -lhe o equilíbrio o rgânico. Precisamos neutralizar essas forças, emitidas pela inquietação, proporcionando, antes de tudo, a possível serenidade à família. E, aproximando -se ainda mais do agonizante, tomou a atitude do magnetizador, exclamando: – Modifiquemos o quadro do com a. Após alguns minutos em que nosso mentor operava, secundado pelo nosso respeitoso silêncio, ouvimos o médico encarnado anunciar aos parentes do moribundo: – Melhoram os prognósticos. A pulsação, inexplicavelmente, está quase normal. A respiração tende a calmar -se. Três senhoras suspiraram aliviadas. – Dona Amanda – dirigiu -se o assistente à esposa do moribundo –, convém que vá repousar, levando as suas cunhadas. O senhor Fernando está muito tranq uilo e a situação é francamente favorável. Ficaremos velando, o senhor Januário e eu. As senhoras e mais dois cavalheiros, que se prontificavam a retirar, |
André Luiz | agradeceram satisfeitos e comovidos. Permaneceram no aposento somente o médico e um irmão do agonizante. A melhora súbita tranq uilizara a todos. E, aos poucos, os fios cinzentos que se ligavam ao enfermo desapareceram sem deixar vestígios. – Abramos a janela – disse o médico satisfeito –, o ar talvez acelere as melhoras do nosso amigo. O senhor Januário atendeu, abrindo a ampla vidraça. Fundamente espantado, repare i que três rostos horríveis pela expressão diabólica surgiram, de repente, no peitoril, e interrogaram em voz alta: – Como é? Fernando vem ou não vem? Ninguém respondeu. Notei, porém, que Aniceto lhes dirigiu significativo olhar, compelindo -os, tão só com essa medida, a desaparecer. Meia hora passou, dentro da qual o médico e o senhor Januário, quase despreocupados do agonizante, pelas melhoras havidas, encetaram uma conversação animada, relativamente a problemas do mundo. Aproveitou Aniceto a serenidade am biente e começou a retirar o corpo espiritual de Fernando, desligando -o dos despojos, reparando eu que iniciara a operação pelos calcanhares, terminando na cabeça, à qual, por fim, parecia estar preso o moribundo por extenso cordão, tal como se dá com os n ascituros terrenos. Aniceto cortou -o com esforço. O corpo de Fernando deu um estremeção, chamando o médico humano ao novo quadro. A operação não fora curta e fácil. Demorara -se longos minutos, durante os quais vi o nosso Instrutor empregar todo o cabedal d e sua atenção e talvez de suas energias magnéticas. A família do morto, informada pelo senhor Januário, aflita penetrou no quarto, ruidosamente. A genitora do desencarnado, porém, auxiliada por Aniceto e pelo facultativo espiritual que nos levara até ali, prestou ao filho os socorros necessários. Daí a instantes, enquanto a família terrena se debruçava em pranto sobre o cadáver, a pequena expedição constituída por três entidades, as duas senhoras e o clínico, saía conduzindo o desencarnado ao instituto de assistência, reparando eu, contudo, que não saíam utilizando a volitação, mas caminhando como simples mortais. Sentia -me fortemente impressionado. Intrigava -me, sobretudo, o aparecimento daqueles rostos satânicos quando se abrira a janela. Porque semelhante menosprezo a um agonizante? Retirando -nos da residência, o Instrutor me fitou atento e, antes que formulasse qualquer pergunta, esclareceu: – Não se preocupe tanto, André, com os vagabundos que esperavam nosso irmão infeliz – Só não penetraram na câmara d e dor porque a nobre presença maternal impedia tal assédio. E, depois de calar -se por momentos, acrescentou: – Cada criatura, na vida, cultiva as afeições que prefere. Fernando estimava os companheiros desregrados. Não é, pois, estranhável, que tenham vind o esperá -lo na estação de volta à existência real. Paulo de Tarso, no capitulo da Epístola aos Hebreus, afirma que o homem está cercado de uma grande “nuvem de testemunhas”. |
André Luiz | Ora, essa informação foi endereçada ao espírito humano há quase vinte séculos. Cada um, pois, tem o séquito invisível a que se devota na Terra. Mais tarde, quando a coletividade apreender a grandeza das lições evangélicas, todo homem terá cuidado na escolha de suas testemunhas. |
André Luiz | Nas despedidas Depois de outras atividades espiri tuais numerosas, findou a semana de serviço a que Aniceto nos admitira em sua companhia. Seguíramos o nobre instrutor, através de tarefas variadas e complexas. Sediados no templo acolhedor de Isabel, atendêramos a considerável número de doentes, bem como a irmãos outros perturbados, abatidos, transviados e moribundos. Nosso orientador tinha, para todos os casos, maravilhosos recursos de improvisação, sempre atencioso e otimista. Aqueles poucos dias de trabalho novo enchera m-me o cérebro de raciocínios novos e o coração de sentimentos que até então desconhecera. Ao contato das revelações de Aniceto, nos domínios da eletricidade e do magnetismo, reformara todos os meus antigos conhecimentos de medicina. A ascendência mental no equilíbrio orgânico, as forças ra dioativas, o campo das bactérias, a visão mais ampla da matéria organizada, compelia m-me a nova conceituação científica na arte de curar os corpos enfermos. Alargara -se, sobretudo, em minh’alma, o entendimento acerca do Médico Divino que restabelece a saúd e do Espírito imortal. A claridade extensa, que me felicitava agora o Espírito, fornecia mais largo conhecimento de Jesus. Compreendi, então, que a fé não constitui uma afirmativa de lábios, nem uma adesão de ordem estatística. Procurá -la-ia, em vão, na es fera sectária, nas disputas vulgares, nos cultos exteriores alteráveis todos os dias. Era, sim, uma fonte d'água viva, nascendo espontaneamente em minha alma. Traduzia -se em reverência profunda, aliada ao mais alto conceito de serviço e responsabilidade, diante das sublimes concessões do Eterno Pai. Encontrara um tesouro inacessível à destruição e um bem intransferível, por nascido e consolidado em mim mesmo. Quando o instrutor nos convidou a regressar, sentia -me positivamente outro. Guardava a impressão de haver encontrado as notícias diretas do Senhor Jesus, na descoberta do meu próprio mundo interior. Como poderia pagar ao prestimoso Aniceto semelhante capitalização de bens imortais? Havia terminado o serviço de orações, na última reunião semanal da resid ência de Isidoro e Isabel. Os trabalhos, sempre ativos, haviam representado esfera de observações e experiências sempre novas. |
André Luiz | Grande número de amigos de Aniceto acercara m-se do instrutor, ansiosos por partilharem a luz da conversação de despedidas. O devo tado orientador oferecia a todos a sua palavra de bom ânimo, otimismo, alegria e confiança no Senhor, como um príncipe de legenda, cuja boca fosse fonte inesgotável de ouro espiritual. Vicente e eu tínhamos os olhos úmidos, desejosos de externar -lhe verbal mente nosso reconhecimento pelas bênçãos recolhidas; mas, ao nos aproximarmos, o abnegado orientador sorriu e antecipou: – Agradeçam a Jesus pelo muito que nos tem dado. E tomando a Bíblia, como interessado em fixar o assunto geral no amor às coisas santif icadas, leu em voz alta, no capítulo segundo dos Provérbios de Salomão: – “Filho meu, se aceitares as minhas palavras e guardares contigo os meus mandamentos, para fazeres atento à sabedoria o teu ouvido e para inclinares o teu coração ao entendimento; e s e clamares por entendimento, e por inteligência alçares a tua voz, se como a prata a buscares e como a tesouros ocultos a procurares, então entenderás o temor do Senhor, e acharás o conhecimento de Deus”. Deixou em seguida o livro sagrado sobre a mesa, e sentenciou: – Lembremo -nos do Senhor em nossas despedidas. Ratifiquemos, irmãos, nossos compromissos de trabalho e testemunho. Em tão pequeno trecho dos Provérbios encontramos muitos verbos que interessam os Espíritos cristãos. Aceitar os mandamentos divin os e guardá -los, tornar o ouvido atento e o coração esclarecido, pedir entendimento e inteligência alçando a voz acima dos objetivos inferiores, buscar os tesouros do Cristo e procurar -lhe o programa de serviços, representa o esforço nobre daquele que, de fato, deseja a Divina Sabedoria. Não esqueçamos esses deveres. Como a pausa se fizesse mais longa, um irmão rogou ao querido amigo prosseguisse na interpretação do texto, mas Aniceto replicou em tom fraternal: – Por agora, meu irmão, não é mais possível. O utras obrigações nos chamam de longe. E, dirigindo -se particularmente a Vicente e a mim, acentuou: – Já que voltaremos pela estrada comum, poderemos esperar por nossa amiga Isabel, para apresentar -lhe nossos agradecimentos e despedidas. Daí a momentos, a n obre companheira de Isidoro, abandonando o corpo ao repouso do sono, veio até nós, junto do esposo espiritual, atendendo ao convite mental do nosso dedicado orientador. Aniceto exprimiu -lhe profundo reconhecimento, falou -lhe da nossa alegria, das oportunid ades santas do serviço que a bondade divina nos havia proporcionado. Dona Isabel agradeceu, comovidamente, deixando transparecer as lágrimas da gratidão que lhe dominava o espírito. – Nobre Aniceto – disse enxugando os olhos –, se for possível, voltai semp re ao nosso modesto lar. Ensinai -me a paciência e a coragem, generoso Provérbios, : – Nota do Autor espiritual. |
André Luiz | amigo! Quando puderdes, não me deixeis transviar nos deveres de mãe, tão difíceis de cumprir na carne, onde os interesses menos dignos se entrechocam com violência. Amparai -me as obrigaç ões de serva do Evangelho de nosso Senhor! Por vezes, profundas saudades da família espiritual me dilaceram o coração... Desejaria arrebatar meus filhos à esfera superior, incliná -los ao bem, para que a nossa união divina não tarde nos planos mais altos da vida. E essas saudades de “Nosso Lar” me pungem a alma, ameaçando, por vezes, minha tarefa humilde na Terra. Nobre Aniceto, não vos esqueçais desta amiga pobre e imperfeita. Sei que Isidoro me segue passo a passo, mas ele e eu precisamos de amigos fortes na fé, como vós, que nos reavivem o bom ânimo na jornada dos deveres cristãos!... A irmã Isabel não pôde continuar, porque o pranto lhe embargara a voz. Aniceto, de olhos brilhantes e serenos, enlaçou -a como pai e falou, brandamente: – Isabel, segue em teu s testemunhos e não temas. Estaremos contigo, agora e sempre. Muitas criaturas admiráveis tiveram a tarefa, mas não esqueçamos, filha, que Jesus teve a tarefa e o sacrifício no mundo. Não nos faltará no caminho redentor o terno cuidad o do Guia Vigilante. Tem bom ânimo e caminha! Em seguida, olhando -nos a todos, de frente, o nobre amigo exclamou: – Agora, irmãos, auxilie m-me a orar! E conservando Isabel e Isidoro, unidos ao seu coração, Aniceto fixou os olhos no alto e falou com sublime beleza. – Senhor, ensina -nos a receber as bênçãos do serviço! Ainda não sabemos, Amado Jesus, compreender a extensão do trabalho que nos confiaste! Permite, Senhor, possamos formar em nossa alma a convicção de que a Obra do Mundo te pertence, a fim de que a vaidade não se insinue em nossos corações com as aparências do bem! “Dá-nos, Mestre, o espírito de consagração aos nossos deveres e desapego aos resultados que pertencem ao teu amor! “Ensina -nos a agir sem as algemas das paixões, para que reconheçamos os teus santos objetivos! “Senhor Amorável, ajuda -nos a ser teus leais servidores; Amoroso, concede -nos, ainda, as tuas lições; Juiz Reto, conduze -nos aos caminhos direitos; “Médico Sublime, restaura -nos a saúde; “Pastor Compassivo, guia -nos à frente das águas vivas; “Engenheiro Sábio, dá -nos teu roteiro; “Administrador Generoso, inspira -nos a tarefa; “Semeador do Bem, ensina -nos a cultivar o campo de nossas almas; “Carpinteiro Divino, auxilia -nos a construir nossa casa eterna; Oleiro Cuidadoso, corrige -nos o vaso do coração; “Amigo Desvelado, sê indulgente, a inda, para com as nossas fraquezas; “Príncipe da Paz, compadece -te de nosso espírito frágil, abre nossos olhos e mostra -nos a estrada de teu Reino!” |
André Luiz | Aniceto calou -se comovido e, de olhos úmidos, contendo a custo as lágrimas do meu reconhecimento, incorpore i-me à nobre caravana que seguiria conosco de regresso a “Nosso Lar”. |