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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Acórdãos STJAcórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2757/23.1YRLSB.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS (RELATORA DE TURNO)
Descritores: COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
EXTRADIÇÃO
RECUSA FACULTATIVA
CUMPRIMENTO DE PENA
PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 03/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO / M.D.E. / RECONHECIMENTO SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I. A extradição foi pedida pelo Brasil ao abrigo da Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CEEMCPLP), a qual tem primazia e prevalece sobre as normas da legislação ordinária interna, como acontece, nomeadamente com a Lei n.º 144/99 (cf. art. 8.º, n.º 2, da CRP).
II. A obrigação de extraditar que resulta do art. 1.º para os Estados contratantes da referida Convenção (CEEMCPLP) apenas pode ser recusada quando ocorrem os motivos de inadmissibilidade previstos no seu art. 3.º ou os de recusa facultativa previstos no seu art. 4.º, os quais são taxativos, inexistindo lacuna a preencher nesse domínio, pelo que não há que recorrer às normas da Lei n.° 144/99.
III. A invocação pelo recorrente do art. 3.º do Tratado de Extradição de 7.05.1991, não tem razão de ser, nem aplicação no caso dos autos, uma vez que deixou de vigorar desde a entrada em vigência da CEEMCPLP, como resulta do seu art. 25.º, n.º 1.
IV. No processo de extradição aqui em causa prevalece o princípio do reconhecimento mútuo, assente na confiança mútua entre Estados e, por isso, havia que viabilizar a entrega para prossecução da ação penal, neste caso na vertente do cumprimento de pena, ao Estado emitente, desde que não houvesse razões formais ou materiais que obstassem ao seu deferimento, como sucede neste caso.
V. O que o recorrente invocou genericamente sobre a situação prisional no Brasil não permite deduzir que, ele próprio será em concreto, submetido a tratamentos desumanos e/ou a situações degradantes.
VI. Visando a decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil de 4.10.2023 a adoção de medidas concretas tendo em vista introduzir melhorias no sistema prisional brasileiro e obviar à violação de Direitos Humanos, daí não resulta, que se pode entender que a Convenção (CEEMCPLP) deixou de ser aplicável em casos concretos como o aqui em apreciação, nem tão pouco se extrai do alegado na Oposição que com a extradição do recorrente para o Brasil esteja, em concreto, colocada em risco a sua própria integridade física ou vida.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça
Relatório
I. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.11.2023 foi autorizada a extradição para o Brasil do cidadão de nacionalidade brasileira AA, ali melhor identificado, para cumprimento da pena de 8 anos e 2 meses de prisão, em que se mostra condenado no processo n.º .....83-55.2013.........0023, da 1ª Vara Criminal da Comarca da Capital, ..., Tribunal de Justiça de ..., Brasil.
II. Inconformado com esse acórdão recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, AA, alegando, em resumo:
- ter sido cerceado a sua defesa, na fase do julgamento do processo de extradição, por terem sido indeferidas todas as diligências requeridas na oposição que apresentou, sem qualquer notificação para explicar as razões porque pretendia que as mesmas fossem efetuadas/cumpridas e, apesar de ter apresentado posteriormente novo requerimento a explicar as razões pelas quais pretendia que aquelas diligências fossem realizadas, mesmo assim foram indeferidas, as quais eram essenciais para dirimir as questões e dúvidas que norteavam a violação dos direitos humanos constatada pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, requerendo, assim, que seja anulado o julgamento efetuado pela Relação e, realizadas as diligências por si pedidas, devendo depois ser submetido a novo julgamento e, também, restituído de imediato à liberdade, nos termos do art. 52.º, n.º 1, da Lei 144/99, de 31.08, por excesso do prazo de detenção (65 dias);
- conforme alegou na oposição que apresentou, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal do Brasil, em julgamento de 4.10.2023, por decisão unânime na ADPF n.º 347, reconheceu a existência de um cenário de violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, em que são negados aos presos, por exemplo, os direitos à integridade física, alimentação, higiene, saúde, estudo e trabalho, tendo sido ainda estabelecido que, a atual situação das prisões no Brasil compromete a capacidade do sistema de cumprir os fins de garantir a segurança pública e ressocializar os presos, pelo que não deve ser determinada a sua extradição para aquele país, com base no art. 3.º, n.º 1, do Tratado de Extradição entre o Brasil e Portugal, não devendo ser ignorado aquele acórdão de 4.10.2023, que declara que o sistema prisional do seu país “viola massivamente os direitos humanos”, sob pena de se estar a ser conivente com a violação dos direitos humanos, devendo ter-se em atenção o disposto nos arts. 2.º e 5.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), 7.ºe 10.º, n.º 1 e n.º 3, do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e 16.º, n.º 1, da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis Desumanos ou Degradantes, não sendo aplicáveis primacialmente (como alegado no acórdão recorrido) as normas da Convenção CPLP, por haver uma lacuna e, assim serem aplicáveis as normas dos arts. 3.º e 18.º, n.º 2, da Lei 144/99, além do art. 3, n.º 1, al. e), da Convenção CPLP, havendo uma contradição no acórdão recorrido.
Termina realçando que se OPÕE veementemente à sua extradição, uma vez que se for transferido para o Brasil, não terá condições de ser ressocializado, sendo certo que será submetido a tratamentos desumanos e situações degradantes, pedindo:
a) Seja acolhida a preliminar suscitada, para anular o d. Acórdão por cerceamento de defesa, determinando que sejam efetuadas as diligências e produzidas as provas requeridas pelo recorrente em sede de Oposição, para que então seja submetido a novo julgamento, bem como seja imediatamente restituído à liberdade em razão de excesso de prazo, nos termos do art. 52.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto;
b) Não sendo acolhida a preliminar, seja o presente recurso recebido e processado, para ao final ser julgado TOTALMENTE PROCEDENTE, reformando, assim, a decisão proferida pelo E. Tribunal da Relação de Lisboa, recusar a extradição do recorrente pela comprovada violação dos direitos humanos pelo Estado requerente, com fulcro nos arts. 3.º, n.º 1, alínea e) da Convenção CPLP e do art. 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto.
c) Provar o alegado por todos os meios em direito admitidos, especialmente a junção de documentos;
Por fim, pede deferimento.
III. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. O Acórdão recorrido mostra-se corretamente fundamentado de facto e direito, tendo o Tribunal recorrido realizado todas as diligências úteis e necessárias.
2. Não se vê que a extradição para o Brasil tenha como segura consequência a colocação em risco da integridade física ou da vida do extraditando.
3. A ser assim, a argumentação apresentada pelo Recorrente não tem qualquer fundamento e como tal o douto Acórdão recorrido não merece nenhum reparo ou censura.
Termina que seja mantido o acórdão recorrido e negado provimento ao recurso.
IV. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, no exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos legais.
V. Um dia antes da data designada para a conferência, sendo hoje junto a estes autos de recurso, veio o recorrente apresentar requerimento e juntar diversos documentos, pedindo a suspensão do conhecimento do presente Recurso até que as autoridades brasileiras se manifestem acerca da manutenção do interesse na sua extradição e, consequentemente, seja o presente processo excluído da tabela de 03.01.2024.
Para tanto invoca que, “como consta do processo de extradição, o processo de execução da pena do extraditando foi suspenso no Brasil até manifestação do departamento responsável quanto ao preenchimento dos requisitos para o cumprimento da pena em Portugal”, acontecendo que “o Brasil está em recesso forense, o que, pese embora não interrompa a tramitação do presente processo, acaba por atrasar pela redução de efetivos.” Acrescenta que, é possível confirmar a veracidade do acórdão brasileiro junto a estes autos pelo certificado de autenticidade do documento, que “Assim sendo, não faz sentido que este processo de extradição seja julgado agora, se o próprio processo de execução de sentença que deu origem ao presente processo se encontra suspenso. E mais, não faz sentido que este processo seja julgado se perderá o seu objeto com a confirmação do preenchimento dos requisitos para cumprimento da pena em Portugal. As autoridades brasileiras foram notificadas por determinação do Tribunal a quo (Tribunal da Relação de Lisboa) para que se manifestem acerca da manutenção ou não do interesse na extradição, sendo que até a presente data não se manifestaram.” Finalmente, adianta que “O condenado, inclusive, já requereu a transferência do seu processo para Portugal, entretanto ainda aguarda os trâmites legais (anexo).”
Vejamos então.
A esfera de cognição deste STJ limita-se ao conhecimento do recurso interposto do acórdão proferido pela Relação de Lisboa em 28.11.2023.
Uma vez que o recorrente não desistiu do conhecimento do recurso, não há motivo para o STJ deixar de conhecer do mesmo.
Daí que o alegado no requerimento em análise não constitua motivo para suspender ou impedir o conhecimento do recurso por este STJ ou para o retirar da tabela.
As demais questões que o recorrente adianta no requerimento, relativas ao processo de extradição, para fundamentar o seu pedido, não são da competência do STJ, mas antes da Relação de Lisboa.
Indefere-se, pois, o requerido.
VI. Assim, passando a conhecer do recurso.
Fundamentação
Factos
Do acórdão sob recurso resultam assentes os seguintes factos e ocorrências processuais relevantes:
Com interesse para a decisão a proferir, encontram-se provados os seguintes factos:
1. AA, no âmbito do Processo nº .....83-55.2013.........0023, da 1ª Vara Criminal da Comarca da Capital, ..., Tribunal de Justiça de ..., Brasil, foi condenado, por sentença datada de 07 de junho de 2017, transitada em julgado em 04 de março de 2020, na pena única de oito anos e dois meses de prisão, em regime inicial fechado, e no pagamento de treze dias-multa, pela prática do crime de roubo agravado1, previsto e punido pelo artigo 157º §2º incisos I, II, V, c/c artigo 61, inciso I e do crime de associação criminosa2 previsto e punido pelo artigo 288, parágrafo único, c/c artigo 61, inciso I, c/c artigo 69 todos do Código Penal Brasileiro.
2. Os factos por que foi condenado são, em síntese, os seguintes:
“FATO 1 – DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA
A partir do dia 14 de abril de 2012, os denunciados BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, AA, II, JJ, KK e LL, todos agindo livremente, decidiram associar-se, de maneira estável e permanente, para praticar diversos delitos de roubo no município de ..., com a participação efetiva do adolescente à época MM. Dentro da estrutura criminosa, pode-se concluir que os denunciados BB, CC, e DD bem como o adolescente MM, tinham como função precípua o aparelhamento da organização, sendo responsáveis pela compra dos produtos necessários para as práticas delitivas, tal como maçaricos, lona, botijões de gás, barras de ferro, dentre outros, prestando apoio logístico e material, comandando o controle geral do agrupamento, enquanto EE, FF, GG, HH, AA, II, JJ, KK, LL participavam de todo o planejamento e, também, executavam diretamente os crimes por todos engendrados.
FATO 4 – B..., S.A.
No dia 19 de julho de 2012, por volta das 23h30min, os denunciados JJ e HH, já antes combinados, se dirigiram até ao B..., S.A., e renderam, mediante grave ameaça decorrente do uso de armas de fogo (uma 9mm de uso restrito e uma outra Calibre .45), os dois vigias do local, NN e OO, obrigando-os a abrir o portão de entrada do estabelecimento, por onde entrou um veículo do qual saíram os outros 4 (quatro) denunciados, quais sejam AA, KK, II e um ainda não identificado. Com todos já dentro do B..., S.A., as vítimas foram mantidas sob controle do grupo e amarradas com fitas nas mãos e nos pés, enquanto os denunciados AA, KK, II e um quarto não identificado se dirigiram até os terminais de auto atendimento e arrombaram (Laudo Pericial n. .....52/2012 fls. 88-94 dos autos n. .....71-44.2012.........0023), com o uso de maçaricos, o caixa eletrônico do Banco do Brasil, retirando de seu interior todo o numerário armazenado e saíram de lá com a posse mansa e pacífica do dinheiro. Com este proceder, os denunciados JJ e HH, AA, KK, II, todos previamente ajustados, além de utilizarem armas de fogo, restringiram a liberdade dos vigilantes locomover-se, por tempo juridicamente relevante.
(…)
Por estarem os réus ao desabrigo de quaisquer das excludentes de ilicitude previstas no nosso ordenamento legal e por possuírem capacidade de reconhecer o caráter ilícito de sua conduta, de modo que poderiam ter agido de forma diversa, logo imputáveis, merecem a reprimenda legal que lhes será imposta na exata medida de suas responsabilidades.”
3. AA tem ainda por cumprir a pena remanescente de sete anos, sete meses e dezoito dias de prisão.
4. As autoridades brasileiras pretendem que AA seja extraditado para a República Federativa do Brasil para cumprimento da referida pena de prisão.
5. AA tem nacionalidade brasileira.
6. Foi detido com fundamento no mandado de detenção internacional emitido em .... de agosto de 2022 pela República Federativa do Brasil, inserido no sistema de informação oficial da Interpol sob notícia vermelha.
7. Sua Excelência a Senhora Ministra da Justiça, pelo despacho nº .09/MJ/2023, no Processo nº ..67/2023, assinado em 31 de outubro de 2023, declarou admissível o pedido de extradição.
8. O pedido formal de extradição foi recebido neste Tribunal, mostra-se junto aos autos e encontra-se devidamente instruído, pela forma legalmente exigida pela Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
9. Inexiste conhecimento de que se encontre pendente em Portugal qualquer processo com o mesmo objeto.
Dos autos resulta, ainda, que:
10. AA apresentou, em 09.10.2018, junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, «declaração de início de atividade» como «prestador de serviços», e é detentor de título de residência temporário com o nº .......98.
11. Em procedimento de “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347”, desencadeado perante o Supremo Tribunal Federal do Brasil foi proferida decisão, em 04.10.20233, que concluiu:
“1. Há um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, responsável pela violação massiva de direitos fundamentais dos presos. Tal estado de coisas demanda a atuação cooperativa das diversas autoridades, instituições e comunidade para a construção de uma solução satisfatória.
2. Diante disso, União, Estados e Distrito Federal, em conjunto com o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ), deverão elaborar planos a serem submetidos à homologação do Supremo Tribunal Federal, nos prazos e observadas as diretrizes e finalidades expostas no presente voto, especialmente voltados para o controle da superlotação carcerária, da má qualidade das vagas existentes e da entrada e saída dos presos.
3. O CNJ realizará estudo e regulará a criação de número de varas de execução penal proporcional ao número de varas criminais e ao quantitativo de presos.”
Inexistem quaisquer outros factos provados ou não provados com relevância para a decisão.
*
A convicção deste Tribunal quanto aos factos provados, formou-se com base na análise crítica dos documentos juntos aos autos emanados das autoridades brasileiras e bem assim do teor do despacho de Sua Excelência a Senhora Ministra da Justiça, cuja veracidade não está colocada em causa.
Foram também considerados os documentos juntos pelo requerido (que traduzem a factualidade referida em 10.) e consultado o sítio oficial do Supremo Tribunal Federal da República Federativa do Brasil, alojado em www.portal.stf.jus.br.
***
Direito
VII. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).
Ora, analisado o recurso apresentado pelo requerido para o STJ, verifica-se que foram colocadas as seguintes questões:
1. pedido de anulação de julgamento e, bem assim, de restituição imediata à liberdade (assente no indeferimento da produção de prova requerida na oposição ao pedido de extradição);
2. pedido de recusa da extradição (por alegada violação dos direitos humanos, caso seja extraditado para o Brasil, devido ao sistema prisional brasileiro).
VIII. Antes de mais, vejamos então o que consta do acórdão sob recurso, quando se pronunciou sobre a oposição apresentada pelo extraditando ao pedido de extradição:
II.2. Fundamentos de direito:
Tendo em conta a oposição deduzida pelo extraditando, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se deve ser negada a extradição, face ao enquadramento familiar e profissional do requerido em Portugal, o qual quedará posto em causa pela sua transferência para o Brasil;
2. Se deve recusar-se a extradição com fundamento na falta de condições no sistema prisional brasileiro, suscetível de por em causa direitos fundamentais do condenado.
Apreciemos.
O MINISTÉRIO PÚBLICO promove o cumprimento do pedido de extradição com origem na República Federativa do Brasil, para cumprimento de pena.
De acordo com o artigo 3º, com referência ao artigo 1º, ambos da Lei nº 144/99, de 31 de agosto – que aprova a lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal - a extradição rege-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português, só havendo lugar à aplicação da lei da cooperação na falta desses instrumentos internacionais ou na sua insuficiência, e a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, subscrita em 23.11.2005, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 49/2008, de 18 de julho, publicada no DR nº 178, de 15.09.2008, ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 67/2008, de 15 de setembro, com entrada em vigor em 01.03.2010, no seu artigo 25º, nº 1, estabelece que “substitui, no que respeita aos Estados aos quais se aplica, as disposições de tratados, convenções ou acordos bilaterais que, entre dois Estados Contratantes, regulem a matéria da extradição.”
A República Federativa do Brasil invoca precisamente as normas desta Convenção para alicerçar a sua pretensão.
Tal pedido, que foi julgado admissível por despacho de Sua Excelência a Senhora Ministra da Justiça, refere-se a factos subsumíveis ao artigo 157 §2º incisos I, II, V, c/c artigo 61, inciso I (roubo agravado) e ao artigo 288, parágrafo único, c/c artigo 61, inciso I, c/c artigo 69 (associação criminosa), todos do Código Penal Brasileiro.
O extraditando é o próprio e foi informado da matéria do pedido de extradição.
O pedido extradicional contém cópia dos documentos pertinentes, atesta a existência de ordem de detenção do extraditando e foi regularmente transmitido, obedecendo aos requisitos de forma e de conteúdo previstos no artigo 10º da Convenção CPLP.
Os crimes por que o extraditando se encontra condenado têm correspondência no disposto no artigo 210º, nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), ambos do Código Penal Português, quanto ao crime de roubo, punível com pena de prisão de 3 a 15 anos, e no artigo 299º, nos 1 e 2 do Código Penal Português, quanto ao crime de associação criminosa, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos. Ou seja, qualquer dos crimes é punível com pena de duração máxima não inferior a um ano.
A pena por cumprir não é inferior a 6 meses, sendo que também não se mostra extinta por efeito de prescrição, conforme resulta do estabelecido nos artigos 122º, nos 1, alínea b) e 2, 125º e 126º, do Código Penal Português – não estando igualmente prescrita face ao ordenamento do Estado requerente, como decorre dos artigos 109º, inciso II, 110º e 112º, inciso I, todos do Código Penal Brasileiro.
Analisemos então os motivos apresentados pelo extraditando para a sua oposição ao pedido.
Como acima se referiu, no caso em apreço, importa ter em atenção as normas da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (doravante Convenção CPLP), que são aplicáveis primacialmente, pois as da Lei nº 144/99, de 31 de agosto, só o serão em caso de falta ou insuficiência daquelas.
Assim, prevê-se no artigo 1º da Convenção CPLP, sob a epígrafe «obrigação de extraditar», que “Os Estados Contratantes obrigam-se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas na presente Convenção, as pessoas que se encontrem nos seus respetivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.”
Já o artigo 2º da Convenção CPLP estabelece, sob o título «factos determinantes da extradição», que: “1 - Dão causa à extradição os factos tipificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano.
2 - Se a extradição for requerida para o cumprimento de uma pena privativa da liberdade exige-se, ainda, que a parte da pena por cumprir não seja inferior a seis meses.
3 - Se a extradição requerida por um dos Estados Contratantes se referir a diversos crimes, respeitado o princípio da dupla incriminação para cada um deles, basta que apenas um satisfaça as exigências previstas no presente artigo para que a extradição possa ser concedida, inclusive com respeito a todos eles.”
No artigo 3º da mesma Convenção consagram-se as circunstâncias em que é inadmissível a extradição, aí se dispondo que: “1 - Não haverá lugar a extradição nos seguintes casos:
a) Quando se tratar de crime punível com pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física;
b) Quando se tratar de crime que o Estado requerido considere ser político ou com ele conexo. A mera alegação de um fim ou motivo político não implicará que o crime deva necessariamente ser qualificado como tal;
c) Quando se tratar de crime militar que não constitua simultaneamente uma infração de direito comum;
d) Quando a pessoa reclamada tiver sido definitivamente julgada, indultada, beneficiada por amnistia ou objeto de perdão no Estado requerido com respeito ao facto ou aos factos que fundamentam o pedido de extradição;
e) Quando a pessoa reclamada tiver sido condenada ou dever ser julgada no Estado requerente por um tribunal de exceção;
f) Quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido.
2 - Para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 não se consideram crimes de natureza política ou com eles conexos:
a) Os crimes contra a vida de titulares de órgãos de soberania ou de altos cargos públicos ou de pessoas a quem for devida especial proteção segundo o direito internacional;
b) Os atos de pirataria aérea e marítima;
c) Os atos a que seja retirada natureza de infração política por convenções internacionais de que seja parte o Estado requerido;
d) O genocídio, os crimes contra a Humanidade, os crimes de guerra e infrações graves segundo as Convenções de Genebra de 1949;
e) Os atos referidos na Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1984.”
Finalmente, no artigo 4º da Convenção CPLP, dispõe-se que: “A extradição poderá ser recusada se:
a) A pessoa reclamada for nacional do Estado requerido;
b) O crime que deu lugar ao pedido de extradição for punível com pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida;
c) A pessoa reclamada estiver a ser julgada no território do Estado requerido pelos factos que fundamentam o pedido;
d) A pessoa reclamada não puder ser objeto de procedimento criminal em razão da idade;
e) A pessoa reclamada tiver sido condenada à revelia pela infração que deu lugar ao pedido de extradição, exceto se as leis do Estado requerente lhe assegurarem a possibilidade de interposição de recurso, a realização de novo julgamento ou outra garantia de natureza equivalente.”
Relativamente ao pedido de extradição não compete ao tribunal do Estado requerido apreciar o mérito da decisão condenatória do Estado requerente, mormente em caso de cumprimento de uma pena, quanto aos factos que sustentam a respetiva condenação, apenas cumprindo verificar se é, ou não, o detido a pessoa reclamada, e se se verificam, ou não, os requisitos legais da pretensão de extradição.
Aliás, só estes são fundamentos admissíveis da oposição, como claramente consta do artigo 55º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto.
É manifesto que a oposição deduzida pelo extraditando não se funda em nenhuma daquelas circunstâncias, nem elas se verificam no caso presente, tal como resulta do que já se deixou exposto acima.
Importa, então, apreciar a atendibilidade dos argumentos expostos pelo extraditando.
(Consequências graves da extradição para o extraditando e sua família)
Invoca o extraditando que “refez toda a sua vida em Portugal, não tendo mais vínculos com o Brasil, razão pela qual se fosse transferido para cumprir a pena no sistema penitenciário brasileiro estaria gravemente prejudicado em relação aos direitos que a liberdade, em princípio, não lhe afetaria”, mais aditando que “a prestação do auxílio por parte de Portugal agravará o risco da situação do processo de execução da pena – tanto na parte legal quanto prática – do Extraditando, pois estará sozinho, sem apoio da sua família, em um País que não lhe favoreceu a educação e tão pouco condições sociais e econômicas, levando-se em consideração que os processos de execução da pena são pautados por disciplina, ressocialização e reinserção social, apoio da família, entre outros”, sendo que “com a crescente de denúncias no que se refere ao sistema prisional brasileiro, revelando círculo vicioso entre aprisionamento, violação de direitos e violência sobrepostas, em um contexto em que os números são alarmantes e as violações imensas, principalmente as praticadas pelo Estado, a pena é tida como promotora de afrouxamento quando não do desfazimento dos laços familiares dos presos”. Convoca, a propósito, o disposto no o artigo 6º, nº 1, alíneas a) e c) da Lei nº 144/99, de 31 de agosto1.
A propósito de tal invocação, há a dizer, liminarmente, que – tal como já acima se fez notar – não se verifica nenhuma das circunstâncias suscetíveis de determinar a recusa do pedido de cooperação, v.g., a pessoa reclamada não tem nacionalidade portuguesa, não se trata de crime de natureza política ou de crime militar, não há, na condução do processo, violação da Convenção dos Direitos do Homem, não há qualquer motivo para suspeitar que a extradição tenha sido solicitada para perseguir o extraditando, em virtude da sua raça, sexo, nacionalidade, língua, convicções políticas ou ideológicas ou por pertencer a determinado grupo social, o julgamento teve lugar no tribunal comum legalmente competente (e não por tribunal de exceção), os crimes imputados ao extraditando são puníveis quer pela lei brasileira, quer pela lei portuguesa, em qualquer dos casos com pena de prisão superior a um ano, não sendo puníveis com pena de morte ou de prisão perpétua, e não foi instaurado em Portugal procedimento criminal pelos mesmos factos.
Assim, e sem prejuízo de a Convenção CPLP conter norma específica relativa aos pressupostos negativos do pedido de cooperação (o artigo 3º, já citado), que, face à hierarquia de normas traçada no artigo 3º da Lei nº 144/99, de 31 de agosto (e no artigo 25º da Convenção CPLP), sempre afastaria a aplicabilidade direta daquele artigo 6º da Lei nº 144/99, a verdade é que também não se mostram verificados os respetivos requisitos negativos.
De igual sorte, importa referir que não é, igualmente, aplicável ao caso o artigo 18º, nº 2 da Lei nº 144/992, já que, como se disse, a Convenção CPLP rege de forma cabal e taxativa sobre os motivos de inadmissibilidade da extradição ou sua recusa facultativa e a problemática familiar não consta do elenco, nem de uns, nem de outros.
Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.04.202136, “dispõe o artº 25º, nº 1, da referida Convenção que «A presente Convenção substitui, no que respeita aos Estados aos quais se aplica, as disposições de tratados, convenções ou acordos bilaterais que, entre dois Estados Contratantes, regulem a matéria da extradição.»
Significa isto que não tem aplicação do artº 18º, nº 2, da L. 144/99 de 31/8, como bem se refere no ac. do S.T.J. de 30/10/2013: «da hermenêutica do preceito do artigo 4.º da Convenção de Extradição entre Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa resulta que ali se indicam taxativamente as situações de recusa facultativa da extradição»”.
Mas, mesmo que assim se não entendesse, tem vindo a consolidar-se no Supremo Tribunal de Justiça o entendimento, a que aderimos, de que “não se enquadra como motivo de recusa de extradição prevista no artigo 18º, nº 2, da LCJ “circunstâncias graves para a pessoa visada em razão de outros motivos de carácter pessoal”, o facto do extraditando ter família (filhos) a residir no nosso País. Tem-se decidido no sentido que o afastamento da família é uma consequência “inevitável” da extradição (…) e que não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça”, como elucida cabalmente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.04.20204.
E, como resulta do mesmo raciocínio, também não integrarão esse motivo as eventuais consequências que da extradição resultem para os seus familiares (v.g., a sua companheira), ou ainda para o próprio no âmbito do benefício de medidas de flexibilização da pena.
Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.20235, “O facto de o recorrente, cidadão brasileiro, ir para o Brasil para fins de procedimento criminal e, ficar nesse período afastado de Portugal, onde se inseriu profissionalmente e está integrado familiarmente, mesmo interrompendo temporariamente o seu projeto de vida, não ofende os seus direitos fundamentais, antes é uma consequência normal de quem é extraditado para esse efeito, não se vendo que haja qualquer desproporção entre as suas condições de vida em Portugal por um lado e a importância do ato de cooperação aqui em causa por outro lado (que foi deferido, por se verificarem os pressupostos legais para o efeito)” – tal é, também, o caso dos presentes autos.
Finalmente, importa dar nota de que na Convenção CPLP não está prevista a possibilidade de substituição da extradição pelo cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional português – o que poderá, eventualmente, ser peticionado perante o Estado requerente, não produzindo, porém, qualquer impacto na marcha do processo de extradição passiva em curso6.
(Condições no sistema prisional brasileiro)
Aduz ainda o recorrente que “se for transferido para o Brasil, não terá condições de ser ressocializado, sendo certo que será submetido a tratamentos desumanos e situações degradantes que nem o pior dos criminosos merece”.
Convoca, a propósito, a decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil de 04.102.2023, na ADPF nº 347 (referenciada no ponto 11. da fundamentação de facto), que diz ter reconhecido “a existência de um cenário de violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, em que são negados aos presos, por exemplo, os direitos à integridade física, alimentação, higiene, saúde, estudo e trabalho. Ainda, foi estabelecido que a atual situação das prisões compromete a capacidade do sistema de cumprir os fins de garantir a segurança pública e ressocializar os presos”.
Pese embora a referida decisão proferida na ADPF nº 347 seja muito recente, a questão em si mesma não é original e tem sido apreciada e decidida de forma consistente pelo nosso Supremo Tribunal de Justiça.
Com efeito, no mencionado acórdão de 21.04.2021, podemos ler:
“(…) Brasil é um Estado democrático, assente em princípios fundamentais como a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a separação de poderes, regendo-se nas suas relações internacionais pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, sendo certo que subscreveu inúmeras convenções internacionais respeitantes aos direitos humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e a Convenção de extradição entre os Estados membros da CPLP, razão pela qual as autoridades brasileiras não deixarão de assegurar, de forma integral, o respeito pelos direitos fundamentais do extraditando.
Como, aliás, se refere no Ac. STJ de 7/9/2017, Proc. 483/16.7YRLSB.S1, «Tendo cada país um regime político-criminal próprio os países subscritores da Convenção da CPLP não deixaram de ter em conta uma comum identidade de princípios e valores de defesa dos direitos humanos quando reciprocamente se obrigaram à extradição enquanto forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal, de forma a combater de forma eficaz a criminalidade.
E no que respeita ao Brasil, que é hoje indiscutivelmente um país democrático, é desde logo a Constituição da República que no seu art.º 1.º garante a dignidade da pessoa humana, a independência dos poderes (legislativo, executivo e judiciário) (art.º 2.º), a regência das suas relações internacionais com prevalência dos direitos humanos (…) e a concessão de asilo político (art.º 4.º).
(…)
Para além disso, o Brasil é um Estado Parte do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (1966), que ratificou em 1992, bem como da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e que, à semelhança da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, não deixam de lhe conferir o direito a um processo justo e equitativo, no modo como é consagrado pelo art.º 6.º desta Convenção e acolhido no art.º 20.º da CRP, como, de resto, explanou o acórdão recorrido, do direito à publicidade, direito ao contraditório, direito à igualdade de armas, direito a estar presente, direito ao silêncio e direito a julgamento em prazo razoável»”.
Porque assim é, efetivamente, este argumento expendido pelo requerido não pode proceder.
Acresce que, de qualquer modo, da Convenção CPLP também não consta a admissibilidade de recusa da extradição com motivo nas alegadas más condições do sistema prisional do Estado emissor do pedido de cooperação, sendo certo que, como se pode ainda ler no mesmo aresto (citando o acórdão do mesmo Tribunal de 30.10.20137), “à dita Convenção “encontra-se subjacente a ideia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas””.
Daí que não se vê que que a extradição para o Brasil tenha como segura consequência a colocação em risco da integridade física ou da vida do requerido, sendo que cabe notar que a decisão proferida na mencionada ADPF nº 347 prevê a adoção de medidas concretas tendo em vista introduzir melhorias no sistema prisional brasileiro e obviar à violação de Direitos Humanos constatada pelo Supremo Tribunal.
Destarte, não ocorrendo causa alguma de inadmissibilidade ou de recusa facultativa da extradição, constante dos artigos 3º e 4º da Convenção CPLP, não sendo aplicável in casu o estabelecido no artigo 18º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto, e bem assim porque o cumprimento do pedido de extradição não se mostra contrário à segurança, à ordem pública ou a outros interesses fundamentais do Estado Português, cumpre deferir o pedido de extradição.
Analisemos então o recurso.
1.ª Questão
Começa o recorrente por pedir a anulação de julgamento e, bem assim, a sua restituição imediata à liberdade, por lhe ter sido indeferida a produção de prova requerida na oposição apresentada ao pedido de extradição.
Alega, em resumo, ter sido cerceado na sua defesa, na fase do julgamento do processo de extradição, por terem sido indeferidas todas as diligências requeridas na oposição que apresentou, sem qualquer notificação para explicar as razões porque pretendia que as mesmas fossem efetuadas/cumpridas e, apesar de ter apresentado posteriormente novo requerimento a explicar as razões pelas quais pretendia que aquelas diligências fossem realizadas, foram indeferidas, as quais eram essenciais para dirimir as questões e dúvidas que norteavam a violação dos direitos humanos constatada pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil em 4.10.2023, requerendo que seja anulado o julgamento efetuado pela Relação e, realizadas as diligências por si pedidas, devendo depois ser submetido a novo julgamento e, também, restituído de imediato à liberdade, nos termos do art. 52.º, n.º 1, da Lei 144/99, de 31.08, por excesso do prazo de detenção (65 dias).
Pois bem.
i) Na oposição ao pedido de extradição, o extraditando requereu as seguintes diligências de prova:
a) Provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos, em especial documental e testemunhal;
b) A junção de 15 (quinze) documentos;
c) A audição do Extraditando (depoimento pessoal);
d) A inquirição de testemunhas (rol de testemunhas);
e) Seja oficiada a PGR sobre o que aqui foi DENUNCIADO pelo Extraditando, para que sejam adotadas as providências contra o Estado requerente pela inobservância dos Tratados Internacionais sobre os Direitos Humanos;
f) Seja oficiado o Estado requerente para que se manifeste sobre a ADPF n.º 347 e do do sistema carcerário brasileiro;
g) Sejam oficiados o Exmo. Sr. Presidente da República e os Srs. Dr.s Ministros da República Federativa do Brasil indicados a seguir, para se manifestarem acerca do sistema carcerário brasileiro e da ADPF n.º 347:
g.I) Exmo. Sr. Dr. PP, Min. Da Justiça da República Federativa do Brasil, ..., ... Brasil, ................br ; ........................br;
g.II) Exmo. Sr. Min QQ, Min. e presidente do STF da República Federativa do Brasil, Palácio do Supremo Tribunal Federal, ..., ..., Brasil, ......................br;
g.III) Exmo. Sr. Min. RR, Ex-Min. do STF da República Federativa do Brasil, Palácio do Supremo Tribunal Federal, ..., DF, ..., Brasil, .....................br;
g.IV) Exmo. Sr. Min. SS, Min. do STF da República Federativa do Brasil, Palácio do Supremo Tribunal Federal, ..., ..., Brasil, ...............................br;
g.V) Exmo. Sr. Min. TT, Min. dos Direitos Humanos e Cidadania, ..., DF, ... Brasil, .......................br;
g.VI) Exmo. Sr. Pres. UU, Presidente da República do Brasil, ..., ..., Brasil, ..........................br , ..........................br;
PROVA TESTEMUNHAL (ROL):
a) Sra. VV, Passaporte n.º ......Y3, emitido por ..., válido até 06/Abril/2026, residente e domiciliado(a) em ..., ... ...;
b) Sr. Dr. WW, Doc. de Identidade Brasileiro n.º .....48, emitido por SSP/SC, residente e domiciliado na Rua ..., ap. 801, bairro ..., na cidade de ..., Brasil, ......................om, ... .. ...02-0130 (por meios eletrônicos/videoconferência).
ii) Na resposta à oposição o MP pronunciou-se no sentido de que “o pedido de extradição respeita os requisitos gerais da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, bem como os requisitos estabelecidos nos artigos 2.º e 10.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa” e que apesar de “ser público e notório o estado do sistema penitenciário brasileiro, o pedido de extradição pedido foi julgado admissível por parecer de Sua Ex.ª a Conselheira Procuradora-Geral da República e por despacho de Sua Ex.ª a Senhora Ministra da Justiça”, sendo que “Os fundamentos apresentados na oposição à extradição mostram-se insuficientes e carecem de suporte legal de modo a impedirem a extradição”, pelo que “no caso em apreço, não se verificam quaisquer motivos, de natureza obrigatória ou facultativa, impeditivos do deferimento do pedido de extradição”, além de que “as diligências de prova requeridas, a nosso ver, não se mostram úteis e necessárias para a questão que cumpre decidir”, devendo ser indeferidas.
iii) Em 22.11.2023 foi proferido o seguinte despacho judicial:
Dê-se conhecimento ao extraditando da resposta à oposição apresentada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.
*
Na oposição deduzida requereu o extraditando AA:
“b) A junção de 15 (quinze) documentos;
c) A audição do Extraditando (depoimento pessoal);
d) A inquirição de testemunhas (rol de testemunhas);
e) Seja oficiada a PGR sobre o que aqui foi DENUNCIADO pelo Extraditando, para que sejam adotadas as providências contra o Estado requerente pela inobservância dos Tratados Internacionais sobre os Direitos Humanos;
f) Seja oficiado o Estado requerente para que se manifeste sobre a ADPF n.º 347 e do do sistema carcerário brasileiro;
g) Sejam oficiados o Exmo. Sr. Presidente da República e os Srs. Dr.s Ministros da República Federativa do Brasil indicados a seguir, para se manifestarem acerca do sistema carcerário brasileiro e da ADPF n.º 347:
g.I) Exmo. Sr. Dr. PP, Min. Da Justiça da República Federativa do Brasil, ..., ... Brasil, ................br; ........................br;
g.II) Exmo. Sr. Min QQ, Min. e presidente do STF da República Federativa do Brasil, Palácio do Supremo Tribunal Federal, ..., ..., Brasil, ......................br;
g.III) Exmo. Sr. Min. RR, Ex-Min. do STF da República Federativa do Brasil, Palácio do Supremo Tribunal Federal, ..., ..., Brasil, .....................br;
g.IV) Exmo. Sr. Min. SS, Min. do STF da República Federativa do Brasil, Palácio do Supremo Tribunal Federal, ..., ..., Brasil, ...............................br;
g.V) Exmo. Sr. Min. TT, Min. dos Direitos Humanos e Cidadania, Esplanada dos Ministérios ..., ..., ... Brasil, .......................br;
g.VI) Exmo. Sr. Pres. UU, Presidente da República do Brasil, ..., ..., Brasil, ..........................br, ..........................br;
PROVA TESTEMUNHAL (ROL):
a) Sra. VV, Passaporte n.º ......Y3, emitido por ..., válido até 06/Abril/2026, residente e domiciliado(a) em Rua ..., ... ...;
b) Sr. Dr. WW, Doc. de Identidade Brasileiro n.º .....48, emitido por SSP/SC, residente e domiciliado na Rua ..., ap. 801, bairro ..., na cidade de ..., Brasil, ......................om, ... .. ...02-0130 (por meios eletrônicos/videoconferência).”
Na sua resposta, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento de tais diligências.
Cumpre tomar posição quanto à admissibilidade das diligências requeridas.
No que se refere aos documentos cuja junção foi requerida, pese embora parte deles constituam «notícias de jornal», outros há que reportam a situação pessoal do extraditando e, nesse sentido, é de admitir a sua manutenção nos autos.
No que se refere às diligências envolvendo responsáveis governamentais brasileiros, mesmo sem se tomar, por ora, posição quanto aos factos a propósito referidos na oposição, é manifesta a sua inutilidade face ao objeto do processo. A opinião que aqueles responsáveis possam ter sobre o sistema prisional brasileiro nenhum relevo apresenta no âmbito dos presentes autos.
Outro tanto se dirá da pretendida interpelação da Procuradoria-Geral da República e do Estado requerente. Note-se que não foi pelo extraditando invocada qualquer circunstância pessoal que pudesse justificar que fossem solicitadas ao Estado requerente garantias adicionais quanto ao cumprimento do pedido de extradição, do que se trata é da formulação de um juízo genérico sobre as condições prisionais existentes na República Federativa do Brasil.
Tal indagação não cabe no âmbito das convenções internacionais de cooperação judiciária, cuja aplicação pressupõe, de resto, o respeito e confiança mútua entre os Estados contratantes.
Não são, pois, de admitir tais diligências.
Quanto à audição pessoal do extraditando, dá-se nota de que o mesmo já foi ouvido presencialmente por este Tribunal da Relação, por duas vezes. A lei não prevê que seja ouvido uma terceira vez, sendo certo que teve oportunidade de apresentar a respetiva oposição, na qual expôs todos os fundamentos que entendeu submeter à apreciação deste Tribunal, e que serão tidos em devida conta na decisão a proferir.
Assim, por inadmissibilidade legal, não se determinará uma terceira audição presencial do extraditando.
Finalmente, no que se refere à inquirição de testemunhas – que, face ao alegado, terão conhecimento das condições de vida do extraditando – há a dizer que os documentos já juntos, bem como as declarações prestadas pelo extraditando se mostram bastantes para o efeito, não se justificando, em consequência a produção de prova adicional quanto a tais aspetos.
Nestes termos, admite-se a requerida junção de documentos, mas indeferem-se todas as demais diligências requeridas, por inúteis e/ou inadmissíveis, nos termos que acima se deixam expostos.
Notifique.
*
Não havendo prova adicional a produzir, não há que determinar a vista do processo para alegações a que se refere o artigo 56º, nº 2, da Lei nº 144/991, devendo o processo ser julgado em conferência.
*
Aos vistos, e em seguida à conferência (dia 28 de novembro de 2023).
D.N.
*
iv)- Notificado desse despacho, em 23.11.2023 o extraditando apresentou novo requerimento pedindo a RECONSIDERAÇÃO dessa decisão que indeferiu o requerimento anterior, nomeadamente no tocante à expedição de ofícios dirigidos aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, ao Ministro da Justiça do Brasil, ao Presidente da República do Brasil e à Procuradoria-Geral da República (PGR) de Portugal, pelas razões que passa a expor:
I. DA JUSTIFICAÇÃO DA NECESSIDADE DAS DILIGÊNCIAS (EXPEDIÇÃO DE OFÍCIOS)
1.º É possível extrair da d. Decisão prolatada o entendimento de que é as diligências requeridas são manifestamente inúteis, senão vejamos:
“No que se refere às diligências envolvendo responsáveis governamentais brasileiros, mesmo sem se tomar, por ora, posição quanto aos factos a propósito referidos na oposição, é manifesta a sua inutilidade face ao objeto do processo. A opinião que aqueles responsáveis possam ter sobre o sistema prisional brasileiro nenhum relevo apresenta no âmbito dos presentes autos.”
2.º Data máxima vénia, a defesa não pode concordar com tal posição.
3.º Primeiramente, ao contrário do que se observa da d. Decisão, pese embora parte dos documentos que foram juntos à Oposição serem “partes de jornal”, os documentos 1, 2 e 3 são documentos extraídos de fontes oficiais do Governo Brasileiro, nomeadamente do Supremo Tribunal Federal (órgão máximo) e do Conselho Nacional de Justiça e, portanto, não são “notícias de jornais” como se afirmou.
4.º Para além disso, os ofícios requeridos não são para pessoas inúteis para o caso, uma vez que aqui se discute uma situação GRAVE de VIOLAÇÃO MASSIVA DOS DIREITOS HUMANOS e, portanto, passíveis de impedir uma extradição.
5.º As pessoas cujas quais se requer sejam oficiadas são, principalmente, pessoas que participaram do julgamento da ADPF n.º 347, inclusive o próprio Min. Relator e o Min. Presidente da sessão de julgamento.
6.º Isto posto, não são pessoas inúteis que emitiram pareceres inúteis, como se fez parecer na respeitável Decisão.
7.º É DEVER do Estado Português proteger e fiscalizar que os DIREITO HUMANOS são rigorosamente observados e, por essa razão, também deverá ser oficiada a PGR para que tenha conhecimento e se posicione sobre o assunto, inclusive oficiando as Autoridades Brasileiras para que se manifestem.
8.º Não podemos nos basear em “presunção de respeito e confiança mútua”, quando estamos diante de uma clara violação dos DIREITOS HUMANOS, declarada pelo órgão máximo (STF) do próprio país Requerente.
II. DO CERCEAMENTO DE DEFESA E PREQUESTIONAMENTO DA MATÉRIA
9.º Com todo respeito, ao negar a produção das provas requeridas pelo Extraditando, estaremos diante de CERCEAMENTO DE DEFESA, principalmente pela gravidade do que foi DENUNCIADO a respeito da VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS.
10.º Isto posto, caso V. Ex.ªs mantenham o mesmo posicionamento, serve a presente petição para prequestionar a matéria a fim de ser discutida futuramente nos Tribunais Superiores, como o STJ e, até mesmo do TEDH.
III. DOS PEDIDOS E REQUERIMENTOS FINAIS
Ex positis, requer seja RECONSIDERADA a d. Decisão retro, para:
a) Deferir as diligências requeridas pelo Extraditando a fim de permitir que tenha uma defesa adequada e plena;
b) Em havendo o deferimento das diligências requeridas, seja o processo retirado da pauta da conferência datada para 28.11.2023, para que aguarde até que todas as provas estejam produzidas e, só então, seja novamente incluído em pauta para julgamento do mérito (Extradição).
Termos em que requer a V. Exa. se digne a deferir as diligências requeridas pelo Extraditando AA.
v)- Sobre esse requerimento recaiu, em 27.11.2023, o seguinte despacho judicial:
Refª Citius ....50:
Visto.
Respeitamos os argumentos expostos pela defesa – que, de resto, reitera o que já havia feito constar da oposição – mas cremos ter deixado claro, no despacho proferido em 22.11.2023 (refª Citius ......06), por que razão não se considera relevante a audição das pessoas indicadas, sendo certo que a ADPF a que faz referência o extraditando se acha disponível no sítio oficial do Supremo Tribunal Federal do Brasil (em www.portal.stf.jus.br), onde pode ser consultada na íntegra por este Tribunal da Relação.
Inexiste, pois, fundamento para «reponderar» o indeferimento das diligências requeridas, mantendo-se o já decidido a este respeito.
Notifique.
*
Vejamos então.
Perante as diligências requeridas na Oposição apresentada pelo extraditando, foi proferido despacho em 22.11.2023, no qual se decidiu admitir a prova documental que havia sido junta, assim como a prova pelo mesmo (extraditando) pessoalmente produzida, quando foi ouvido, por duas vezes, em declarações.
Foram indeferidas as demais provas apresentadas, a saber, a relativa à prova testemunhal relacionada com governantes brasileiros que identificou no ponto g.I) a g.VI) (nos quais fora pedido “para se manifestarem acerca do sistema carcerário brasileiro e da ADPF n.º 347”), com a inquirição de 2 testemunhas que identificou nos pontos a) e b), bem como com a sua terceira audição, com a solicitação de informação ao Estado requerente (para “que se manifeste sobre a ADPF n.º 347 e do sistema carcerário brasileiro”), além do pedido que se oficiasse à PGR (sobre o que foi denunciado na oposição, “para que sejam adotadas as providências contra o Estado requerente pela inobservância dos Tratados Internacionais sobre os Direitos Humanos”).
Tais diligências foram indeferidas pelos motivos indicados no referido despacho de 22.11.2023, que são claros, cabem dentro dos poderes de decisão do juiz e não merecem censura.
Com efeito, tendo em atenção o alegado na Oposição apresentada pelo extraditando e visto o teor da decisão do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal do Brasil de 4.10.2023, proferida na ADPF n.º 347 (que se mostra acessível, via internet, no sítio oficial do Supremo Tribunal Federal do Brasil), era evidente a inutilidade da inquirição dos governantes brasileiros arrolados como testemunhas, dado ser irrelevante a sua opinião para a decisão destes autos, como foi salientado no referido despacho de 22.11.2023.
De esclarecer que, nos processos em geral, incluindo nos de extradição, decide-se sobre factos concretos e não sobre apreciações genéricas ou generalidades e, muito menos, no que aqui interessa, sobre opiniões de responsáveis governamentais, relativas à situação dos estabelecimentos prisionais de determinado país, as quais não tem qualquer natureza pericial e são desprovidas de cariz científico.
Pelos mesmos motivos se compreende que tivessem sido indeferidas as demais provas requeridas relacionadas com esse pedido.
Com efeito, igualmente não fazia sentido pedir a opinião do Estado requerente (Brasil) sobre a situação dos seus estabelecimentos prisionais, nem sobre aquela decisão do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal do Brasil de 4.10.2023, uma vez que essa opinião do governo era irrelevante para a decisão, como acima foi explicado.
O que releva para a decisão neste tipo de processo é saber se, no caso concreto em apreço, se verificam ou não quaisquer motivos, de natureza obrigatória ou facultativa, impeditivos do deferimento do pedido de extradição do requerido.
As opiniões do governo/Estado requerente ou dos responsáveis pelo governo não fazem parte dos motivos de natureza obrigatória ou facultativa, impeditivos do deferimento do pedido de extradição, em casos como o aqui em avaliação.
Daí a manifesta irrelevância dos referidos pedidos de diligências, que foram bem indeferidos.
Também o pedido relativo à PGR não faz sentido, como referido no mesmo despacho de 22.11.2023, uma vez que, como ali se diz, nem sequer foi “pelo extraditando invocada qualquer circunstância pessoal que pudesse justificar que fossem solicitadas ao Estado requerente garantias adicionais quanto ao cumprimento do pedido de extradição, do que se trata é da formulação de um juízo genérico sobre as condições prisionais existentes na República Federativa do Brasil. Tal indagação não cabe no âmbito das convenções internacionais de cooperação judiciária, cuja aplicação pressupõe, de resto, o respeito e confiança mútua entre os Estados contratantes. “
E, é isso mesmo que resulta dos autos, inclusivamente pelo que se viu quer do requerimento apresentado em 23.11.2023 pelo extraditando, quer do próprio teor do recurso ora em análise, tanto mais que, o próprio extraditando não peticiona sequer, para si, garantias adicionais, no caso de ser autorizado o pedido de extradição, antes se limita a formular considerações genéricas sobre as condições prisionais existentes na República Federativa do Brasil.
A indagação pretendida não cabe no âmbito deste processo, que foi instaurado ao abrigo de convenção internacional de cooperação judiciária, tendo subjacente o respeito e a confiança mútua entre os Estados contratantes, neste caso entre o Estado requerente (Brasil) e Estado requerido (Portugal), sendo proibido por lei praticar nos autos atos inúteis (o que, de todo o modo, não impede o recorrente de, por si, apresentar as queixas que entender às entidades competentes para o efeito).
Igualmente o indeferimento da audição, pela 3ª vez, do extraditando não merece censura (tanto mais que, para além de ter sido ouvido duas vezes, também teve a oportunidade de se pronunciar na própria Oposição apresentada, expondo todos os fundamentos que pretendeu que fossem analisados pelo Tribunal), assim como, quanto à requerida inquirição das duas restantes testemunhas (identificadas nas alíneas a) e b) da parte final da Oposição), estamos de acordo com a posição do tribunal a quo, uma vez que, como este bem refere, não se justifica a sua inquirição, por ser desnecessária, face à demais prova produzida, concretamente, documentos já juntos, bem como declarações prestadas pelo extraditando, sobre as suas condições de vida.
De resto, como se pode ver do requerimento que o extraditando apresentou em 23.11.2023, pedindo que fosse reconsiderada a decisão de 22.11.2023 (decisão esta da qual foi notificado em 22.11.2022, referência Citius n.º ......54, apesar de referir o contrário no recurso), nada de novo foi acrescentado, para além de ter feita uma interpretação não consentida pelo texto daquela decisão (não merecendo igualmente qualquer censura a decisão proferida em 27.11.2023).
Além disso, ao contrário do que é alegado no recurso, como ficou demonstrado acima, é manifesto que as diligências acima indicadas não eram essenciais para a decisão deste processo e, muito menos, para a apreciação da oposição.
Como igualmente se defende no ac. do STJ de 9.07.2015, proferido no processo n.º 65/14.8YREVR.S1 (relator João Silva Miguel), “De facto, a letra da lei, apelando às diligências que tiverem sido requeridas, consente uma interpretação que exclua a realização de diligências que sejam inúteis, impertinentes ou dilatórias, em obediência ao princípio da não realização de atos inúteis no processo, e à sua adequação ao fim daquele.”
E o cumprimento desse princípio, no contexto em que foi proferida a decisão de indeferimento daquelas diligências inúteis e desnecessárias, não significam, como pretende o recorrente de forma gratuita, “falta de prazo para cumprir as diligências, produzir as provas requeridas e designar uma audiência de julgamento para ouvir as testemunhas”, por se estarem a esgotar os 65 dias de detenção provisória do recorrente, o que levaria a que tivesse de ser colocado em liberdade.
Improcede, pois, essa argumentação genérica e abstrata do recorrente.
Finalmente, a inutilidade da colocação desta questão no recurso é evidente uma vez que tendo em atenção o teor da Oposição, os factos concretos relacionados com condições de vida do extraditando e com as conclusões da decisão do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal do Brasil de 4.10.2023, proferida na ADPF n.º 347, até foram dados como provados.
Daí que seja manifesta a falta de razão do recorrente, não havendo motivo para ordenar a realização das diligências pedidas, não tendo sido minimamente atingidos os seus direitos de defesa neste processo, nada justificando a pedida anulação do julgamento.
A questão que coloca, quando pede que seja colocado de imediato em liberdade, não faz sentido, uma vez que ainda não decorreu o prazo de detenção provisória a que está sujeito, “conforme art. 52.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99 (a detenção não pode manter-se, sem decisão do recurso, por mais de 80 dias, contados da data da interposição deste) – no caso: 29.02.2024” (ver despacho do TRL de 16.12.2023).
Improcede, pois, toda a argumentação apresentada sobre a matéria em apreciação.
2ª Questão
O extraditando alegou, em resumo, que na oposição que apresentou, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal do Brasil, em decisão de 4.10.2023, por decisão unânime na ADPF n.º 347, reconheceu a existência de um cenário de violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, em que são negados aos presos, por exemplo, os direitos à integridade física, alimentação, higiene, saúde, estudo e trabalho, tendo sido ainda estabelecido que, a atual situação das prisões no Brasil compromete a capacidade do sistema de cumprir os fins de garantir a segurança pública e ressocializar os presos, pelo que não deve ser determinada a sua extradição para aquele país, com base no art. 3.º, n.º 1, do Tratado de Extradição entre o Brasil e Portugal, não devendo ser ignorado aquele acórdão de 4.10.2023, que declara que o sistema prisional do seu país “viola massivamente os direitos humanos”, sob pena de se estar a ser conivente com a violação dos direitos humanos, devendo ter-se em atenção o disposto nos arts. 2.º e 5.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), 7.ºe 10.º, n.º 1 e n.º 3, do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e 16.º, n.º 1, da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis Desumanos ou Degradantes, não sendo aplicáveis primacialmente (como alegado no acórdão recorrido) as normas da Convenção CPLP, por haver uma lacuna e, assim serem aplicáveis as normas dos arts. 3.º e 18.º, n.º 2, da Lei 144/99, além do art. 3, n.º 1, al. e), da Convenção CPLP, havendo uma contradição no acórdão recorrido.
Termina realçando que se OPÕE veementemente à sua extradição, uma vez que se for transferido para o Brasil, não terá condições de ser ressocializado, sendo certo que será submetido a tratamentos desumanos e situações degradantes, pedindo que seja recusada a extradição pela comprovada violação dos direitos humanos pelo Estado requerente, com fulcro no art. 3.º, n.º 1, alínea e) da Convenção CPLP e do art. 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto.
Pois bem.
Como resulta claro destes autos, a extradição foi pedida pelo Brasil ao abrigo da Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CEEMCPLP), a qual tem primazia e prevalece sobre as normas da legislação ordinária interna, como acontece, nomeadamente com a Lei n.º 144/99 (cf. art. 8.º, n.º 2, da CRP).
A obrigação de extraditar que resulta do art. 1.º para os Estados contratantes da referida Convenção (CEEMCPLP) apenas pode ser recusada quando ocorrem os motivos de inadmissibilidade previstos no seu art. 3.º ou os de recusa facultativa previstos no seu art. 4.º.
Trata-se, pois, de um regime próprio e taxativo em matéria de causas de recusa de extradição no âmbito da referida Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que delimita em conformidade a soberania dos Estados Contratantes, inexistindo lacuna a preencher nesse domínio, pelo que não faz sentido recorrer às normas da Lei n.° 144/998.
A invocação pelo recorrente do art. 3.º do Tratado de Extradição de 7.05.1991, não tem razão de ser, nem aplicação no caso dos autos, uma vez que deixou de vigorar desde a entrada em vigência da CEEMCPLP, como resulta do seu art. 25.º, n.º 1.
Quanto à demais argumentação relativa ao sistema prisional brasileiro, onde invocou a referida decisão do Supremo Tribunal Federal de 4.10.2023, já acima vimos que o próprio extraditando não peticionou sequer, para si, garantias adicionais, no caso de ser autorizado o pedido de extradição, antes se limitou a formular considerações genéricas sobre as condições prisionais existentes na República Federativa do Brasil.
E, compreende-se porque, como bem se esclarece no acórdão recorrido, com tal decisão de 4.10.2023 pretende-se melhorar o sistema prisional brasileiro, o que é positivo, mas não ficou inviabilizado que o sistema prisional continue a funcionar.
De recordar que o art. 1.º da Constituição do Brasil estabelece o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio basilar do Estado Democrático de Direito, e o art. 5.º garante que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, enquanto a Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984 (Lei de Execuções Penais) regula, além do mais, os direitos que são assegurados aos condenados/detidos.
Considerando a legislação nacional e internacional a que o Brasil está vinculado, pode-se concluir que está garantida a proteção do recorrente em estabelecimento prisional (tanto mais que o próprio Brasil também está vinculado, entre outras, à Convenção Universal dos Direitos do Homem e à própria Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis).
Ora, na própria notícia vermelha relativa ao seu pedido de detenção, consta no que se refere à “Localização e prisão com vista à extradição”: Garante-se que a extradição será solicitada após detenção da pessoa em causa, em conformidade com a legislação nacional e/ou com os tratados bilaterais e multilaterais aplicáveis.
Portanto, foi garantido pelo Brasil o cumprimento dos tratados bilaterais e multilaterais aplicáveis.
Daí que o Estado requerido (Portugal) deva dar crédito às garantias dadas pelo Estado requerente (Brasil), sendo certo que, ainda que não fosse esse o caso, o recorrente teria no Brasil meios judiciais de exigir o cumprimento que aquele Estado se vinculou para com Portugal, no âmbito do pedido de extradição.
O que não se compreende é que o extraditando, que invoca ter interesse e condições na sua ressocialização, junte na Oposição que apresentou neste processo de extradição que corre em Portugal, certidão relativo a Antecedentes Criminais no Brasil, emitida por autoridade Brasileira, datado de 21.09.2023, pelas 19:56, onde se menciona que “Não consta decisão judicial condenatória com trânsito em julgado”, bem sabendo que essa declaração não correspondia à verdade e, mesmo assim, não se inibiu que fosse junta aos autos, deixando de informar a autoridade brasileira da verdade e da sua situação (particularmente de se ter ausentado para Portugal em 2018, onde se encontrava após trânsito da sua condenação no Brasil, não tendo cumprido a totalidade da pena de 8 anos e 2 meses de prisão em que fora condenado por sentença de 7.06.2017, transitada em julgado em 4.03.2020, sendo detido precisamente em 21.09.2023, pelas 11 horas, em Portugal).
Ora, o recorrente/condenado, como aqui sucede por crimes de roubo e de associação criminosa, que em Portugal correspondem a “criminalidade especialmente violenta” e a “criminalidade altamente organizada” (art. 1.º, alíneas l) e m), do CPP), que efetivamente pretende ressocializar-se, tem de começar por agir com verdade e com responsabilidade, colaborando com as autoridades, designadamente, quando estas desconhecem o seu paradeiro, fornecendo-lhes os elementos necessários, para não ser necessário emitir mandados de detenção internacional (não é ausentando-se do seu país, nele não se apresentar, ficar sem cumprir a pena e imputar responsabilidades às instituições que demonstra que está a integrar-se noutra sociedade e a mudar de vida).
O que o recorrente invocou genericamente sobre a situação prisional no Brasil não permite deduzir que, ele próprio será em concreto, submetido a tratamentos desumanos e a situações degradantes.
A CEEMCPLP, nos seus arts. 2.º a 4º não tinha de contemplar sequer qualquer referência à CEDH e/ou a outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados pelo Brasil, como o faz o art. 6.º, al. a), da Lei 144/99, pois os Estados contratantes daquela Convenção, como se esclarece ao ac. do STJ de 7.09.2017, processo n.º 483/16.7YRLSB.S1 (Francisco M. Caetano), são em princípio Estados democráticos, vinculados à defesa e garantia dos direitos humanos, sendo o Brasil “um Estado Parte do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (1966), que ratificou em 1992, bem como da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e que, à semelhança da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, não deixam de lhe conferir o direito a um processo justo e equitativo, no modo como é consagrado pelo art.º 6.º desta Convenção.”
No mesmo sentido defende-se no ac. do STJ de 23.03.2023, processo n.º 110/23.6YRLSB.S1 (Sénio Alves), que “A verdade é que o Brasil é um Estado democrático, assente em princípios fundamentais como a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a separação de poderes, regendo-se nas suas relações internacionais pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, sendo certo que subscreveu inúmeras convenções internacionais respeitantes aos direitos humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes 9 e a Convenção de extradição entre os Estados membros da CPLP 10, razão pela qual as autoridades brasileiras não deixarão de assegurar, de forma integral, o respeito pelos direitos fundamentais do extraditando e, nomeadamente, a sua própria integridade física.”
Acrescenta-se, neste acórdão de 23.03.202311 que, como se refere no acórdão do STJ, de 30.10.2013, Proc. 86/13.8YREVR.S1, “A Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP não prevê a possibilidade de recusa de extradição com fundamento no alegado funcionamento deficiente do sistema de justiça e do sistema prisional do Estado emissor do pedido de cooperação”. E isto porque à dita Convenção “encontra-se subjacente a ideia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas”. Aliás, apoiando-se no Ac. STJ de 22.04.2020, Proc. 499/18.9YRLSB.S1, refere-se que “O princípio de confiança mútua que subjaz e constitui o cerne da cooperação judiciária internacional funda-se na convicção de que todos os subscritores dos instrumentos daquela cooperação comungam de um conjunto de valores nucleares tributários dos direitos do Homem, estando sujeitos aos mesmos mecanismos específicos e comuns da garantia daqueles valores”. 12
Por isso, não assiste qualquer razão ao recorrente quando faz afirmações em sentido contrário ao supra exposto, invocando que existe uma lacuna na Convenção ou que existe uma contradição no acórdão recorrido.
E, sendo certo que a decisão do Supremo Federal é muito recente, de 4.10.2023, a verdade é que não foi ignorada (até as suas conclusões constam dos factos provados no acórdão recorrido), mas, daí não resulta, que se pode entender que a referida Convenção (CEEMCPLP) deixou de ser aplicável em casos concretos como o aqui em apreciação.
Tal como foi salientado no acórdão sob recurso e é notado pelo MP na resposta ao recurso, “não se vê que a extradição para o Brasil tenha como segura consequência a colocação em risco da integridade física ou da vida do extraditando, sendo que cabe notar que a decisão proferida na mencionada ADPF nº 347 prevê a adoção de medidas concretas tendo em vista introduzir melhorias no sistema prisional brasileiro e obviar à violação de Direitos Humanos constatada pelo Supremo Tribunal”, tratando-se de questão recorrente, que tem vindo ser tratada por variada jurisprudência portuguesa há vários anos.
De todo o modo reitera-se que, prevalece o princípio do reconhecimento mútuo, assente na confiança mútua entre Estados e, por isso, havia que viabilizar a entrega para prossecução da ação penal ao Estado emitente, desde que não houvesse razões formais ou materiais que obstassem ao seu deferimento, como sucede neste caso.
Concorda-se, assim, com a decisão recorrida, quando concluiu, que “não ocorrendo causa alguma de inadmissibilidade ou de recusa facultativa da extradição, constante dos artigos 3º e 4º da Convenção CPLP, não sendo aplicável in casu o estabelecido no artigo 18º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto, e bem assim porque o cumprimento do pedido de extradição não se mostra contrário à segurança, à ordem pública ou a outros interesses fundamentais do Estado Português, cumpre deferir o pedido de extradição.”
Improcede, pois, a mencionada argumentação do recorrente.
Em face do exposto, impõe-se negar provimento ao recurso, sendo certo que não foram violados os princípios e normas invocados pelo recorrente.
*
Decisão
Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA, mantendo-se integralmente o acórdão impugnado.
Sem custas (art. 73º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31.08), sem prejuízo do disposto no art. 26.º n.º 2 als. b) a d) e n.º 4 do mesmo diploma legal.
*
Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.
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Supremo Tribunal de Justiça, 03.01.2024
Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)
Teresa Almeida (Adjunta)
Vasques Osório (Adjunto)
_____
1. Que estabelece que: “O pedido de cooperação é recusado quando:
a) O processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal;
b) Houver fundadas razões para crer que a cooperação é solicitada com o fim de perseguir ou punir uma pessoa em virtude da sua raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, das suas convicções políticas ou ideológicas ou da sua pertença a um grupo social determinado;
c) Existir risco de agravamento da situação processual de uma pessoa por qualquer das razões indicadas na alínea anterior;
(…)”
2. Que, a propósito da recusa facultativa de cooperação, estabelece: “Pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal.”
3. No processo nº 5/21.8YREVR.S1, Relator: Conselheiro Sénio Alves, disponível em www.dgsi.pt.
4. No processo nº 498/18.0YRLSB.S1, Relatora: Conselheira Margarida Blasco, consultável no mesmo endereço eletrónico, e que também é acompanhado, entre outros, pelo referenciado acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 21.04.2021.
5. No processo nº 1669/23.3YRLSB.S1, Relatora: Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, também em www.dgsi.pt.
6. Vd., a propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2022, no processo nº 16/22.6YRPRT-A.S1, Relatora: Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, ainda em www.dgsi.pt.
7. No processo nº 86/13.8YREVR.S1, Relator: Conselheiro Oliveira Mendes, também acessível em www.dgsi.pt.
8. Nesse sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 30.10.2013, Proc. 86/13.8YRREVR.S1 (relatado por Oliveira Mendes); de 22.04.2021, Proc. 4.21.0YREVR.S1 (relatado por Eduardo Loureiro); de 1.08.2022, Proc. 1113/22.3YRLSB.S1 (relatado por Ana Barata Brito).
9. Aprovada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 4, de 23 de Maio de 1989, ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 40, de 15 de Fevereiro de 1991.
10. Tal Convenção foi igualmente ratificada pelo Decreto da Presidente da República Federativa do Brasil nº 7.935, de 19/2/2013, sendo certo que o Congresso Nacional havia já aprovado tal Convenção através do Decreto Legislativo nº 45 de 30/3/2009.
11. Ver, também, no mesmo sentido, Ac. STJ de 11.10.2023, Proc. 1669/23.3YRLSB.S1 (relatora M. Carmo Silva Dias).
12. Ainda no mesmo sentido é indicado o Ac. STJ de 21.04.2021, Proc. 5/21.8YREVR.S1 (relator Sénio Alves).
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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Acórdãos STJAcórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
426/19.6TXEVR-K.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: HABEAS CORPUS
LIBERDADE CONDICIONAL
PRESSUPOSTOS
CUMPRIMENTO SUCESSIVO
TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS
JUÍZO DE PROGNOSE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 20/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. A providência de Habeas corpus tem natureza excecional e é independente do sistema de recursos penais.
II. Em consonância com a sua matriz histórica, destina-se a pôr cobro a situações graves de detenção ou prisão ilegais e mais carecidas de tutela urgente.
III. No caso sub judice, o condenado, ora requerente, encontra-se preso desde 30/07/2019, tendo sido elaborado e homologado o cômputo de penas, em execução sucessiva, nestes termos: o meio do somatório de penas ocorreu em 27/05/2022, os 2/3 ocorreram em 07/05/2023 e o termo está previsto para 27/03/2025, com o desconto de 3 dias de privação de liberdade, de acordo com as liquidações de pena dos dois processos em causa.
IV. Atingiu metade da pena aplicada no processo n.º…, no dia 28/11/2020, tendo nessa data sido desligado do processo n.º …e ligado ao processo n.º … (o que foi feito nos termos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Cód. Penal). Entretanto, atingiu o termo da pena aplicada no processo n.º … no dia 28.11.2023, apesar de ainda não ter sido declara extinta, sendo determinado o seu desligamento do mesmo processo e, de novo, o ligamento ao primeiro processo, com referência ao dia 28/11/2023, a fim de cumprir o que resta da pena aplicada nestes autos.
V. Acontece que, por se tratar de um cômputo de execução sucessiva de penas, defende o requerente que a pena aplicada no processo n.º … se encontra já cumprida, na íntegra, por ter sido atingida a sua metade.
VI. Contudo, há que ter em consideração que a concessão da liberdade condicional está dependente da verificação, pelo Tribunal de Execução de Penas, dos pressupostos (de natureza formal e material) enumerados no artigo 61.º, do Cód. Penal, que podem ser assim sintetizados:
Para ser concedida a meio da pena: se o juiz de execução se convencer que, analisado o caso concreto e a personalidade do preso, é de esperar que este retomará a sua vida sem cometer crimes e que a libertação do preso não vai perturbar a ordem e a paz social; para ser concedida aos 2/3 da pena: já só é necessária a verificação do primeiro requisito anterior, ou seja, a previsão de que não vai cometer crimes; nas condenações de penas superiores a seis anos, além das possibilidades de saída em liberdade condicional – a meio ou aos 2/3 da pena – o preso é sempre posto em liberdade condicional quando atingir 5/6 da pena.
Em todos os casos, nunca ocorre a liberdade condicional antes de cumprido seis meses de prisão efetiva e nunca é decretada a liberdade condicional contra a vontade ou sem o consentimento do condenado.
VII. Por outro lado, o art. 63.º, do mesmo diploma legal, estabelece os procedimentos a ter em conta em caso de execução sucessiva de várias penas.
VIII. Assim, em resumo, a concessão da liberdade condicional, a meio da pena, não é automática ou obrigatória, exigindo-se um juízo de prognose favorável - embora não tão exigente como no caso da suspensão da execução da pena de prisão - sobre o comportamento futuro do recluso em liberdade, nisto residindo o pressuposto material da liberdade condicional.
IX. Ora, na situação concreta, o termo das penas está previsto para 27/03/2025, tendo já sido apreciados pelo TEP os pressupostos da liberdade condicional, ao meio e aos dois terços da soma das penas, não tendo a mesma sido concedida e voltará, novamente, a ser objeto de apreciação, em renovação da instância, no prazo de um ano após a prolação da última decisão que apreciou os pressupostos da liberdade condicional, prevista para 19/04/2024.
X. Nestes termos, consideramos que não se verifica, in casu, qualquer excesso de prisão para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial, como foi invocado, nem qualquer outra situação prevista no art. 222.º n.º 2, do C.P.P., que, aliás, nem sequer foi alegada, pelo que se acorda em indeferir, por falta de fundamento, a providência requerida.
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. O arguido condenado AA, detido no Estabelecimento Prisional Regional de ..., veio, por intermédio do seu ilustre advogado, em 10/12/2023, requerer a presente providência de Habeas corpus, nos termos do disposto nos arts. 31.º, da C.R.P., e 222.º e 223.º, do C.P.P., em virtude da sua prisão se manter para além dos prazos fixados pela lei, com os seguintes fundamentos (Transcrição):
1. O Recluso foi condenado no processo nº 834/17.7..., que correu termos no Juiz- 3 do Juízo local Criminal ... em 2 anos e 8 meses de prisão e no processo nº 779/15.5... que correu termos no Juiz -1 do mesmo Juízo Local Criminal em 3 anos de prisão, a cumprir as referidas condenações no estabelecimento prisional de ... à ordem do processo 426/19.6TXEVR do Juízo de Execução de Penas de Évora – J-....
2. Havendo assim lugar à execução de duas penas de prisão, sucessivas por parte do Recluso.
3. O Recluso está assim detido no estabelecimento prisional de ... desde 31.07.2019.
4. E no dia 28.11.2020 o Recluso atingiu o cumprimento de metade da pena no processo nº 834/17.7... conforme despacho assinado em 2.01.2021, que ordenou assim a interrupção da execução neste processo, ao abrigo do disposto no art.º 63º nº 1 do CP e ordenou o desligamento do Recluso a este processo nº 834/17.7...
5. Passando o Recluso a cumprir a pena de prisão no processo seguinte, de 3 anos, à ordem do processo seguinte com o nº 779/15.5..., a que foi ordenado o seu ligamento. Despacho que se anexa e que aqui se dá por integralmente reproduzido como doc. 1.
6. No dia 27.11.2023, o Recluso terminou o cumprimento da pena, de 3 anos, no Processo nº 779/15.5..., conforme despacho de 27.09.2023 que se anexa como doc. 2 e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
7. E no mesmo despacho de 27.09.2023, que ordenou o termo da execução no processo 779/15.5... no dia 27.11.2023, foi também ordenado no mesmo despacho a interrupção da mesma execução no processo 779/15.5... ao abrigo do disposto no mesmo art.º 63º nº 1 e 2 do CP, e ordenado o ligamento, de novo, ao processo 834/17.7... a fim do Recluso cumprir o remanescente.
8. O que não se compreende.
9. Pois no nosso humilde entendimento, no caso de sucessão do cumprimento de várias penas, dispõe o art.º 63º nº 1 do CP que o cumprimento da pena a cumprir em primeiro lugar se interrompe ao atingir metade da execução.
10. In casu, a execução da primeira pena, à ordem do processo nº 834/17.7..., ficou cumprida ao atingir metade da sua execução, ou seja, para todos os efeitos legais o cumprimento da primeira pena, no caso de cumprimento sucessivo de panas, que é o caso, fica limitado ao cumprimento de metade, conforme dispõe o art.º 63º nº 1 do CP. E foi cumprida.
11. A Este propósito, sobre o nº 1 do art.º 63º do CP, escreve também Victor de Sá Pereira, Juiz Conselheiro Jubilado do STJ no seu Código Penal Anotado e Comentado da Quid Juris na Pag. 225, no ponto 4 das anotações, “Em todo o caso a execução da primeira pena não vai além da respetiva metade por força daquela interrupção “Cópia que anexa como doc.3.
12. E conforme dispõe o art.º 2º do CPP, “A aplicação das penas e das medidas de segurança criminais só podem ter lugar em conformidade com as disposições deste código. “
13. E o nº 1 do art.º 9º do CPP dispõe que: Os Tribunais judiciais administram a justiça penal de acordo com a lei e o direito.
14. E o nº 3 do art.º 9º do CC expressa que: Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais adequadas e soube exprimir o seu pensamento nos termos adequados”.
15. E na interpretação da lei o interprete não pode fazer uma interpretação que contrarie a letra da lei, conforme dispõem o nº 2 do art.º 9º do CC.
16. Além de que conforme dispõe o art.º 97º do CPP, todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas. O que no caso do referido despacho, não o foi, o despacho de 27.09.2023, ordena primeiro o termo da execução e depois ordena a interrupção da execução no mesmo processo, ao abrigo do disposto no nº 1 do art.º 63º do CP. O que não se compreende. Porquê?
17. E depois ordena o desligamento do Segundo processo e novo ligamento ao processo anterior para cumprir o remanescente. Porquê?
18. Pelo que, no nosso entendimento, após o dia 27.11.2023 o recluso deve ser colocado em liberdade de forma imediata, por ter cumprido todo o tempo legalmente exigido.
19. Pois o Recluso cumpriu a metade da pena legalmente exigida no primeiro processo, processo nº 834/17.G..., conforme estipula o art.º 63º nº 1 do CP e onde foi ordenada a interrupção da sua execução, pelo que para todos os efeitos legais se deve considerar como legalmente cumprida e foi ordenado o cumprimento da execução da pena à ordem do segundo processo, processo nº 779/15.5..., que também foi legalmente cumprida.
Nestes Termos e nos mais de Direito, que V.ª Ex.ª muí doutamente suprirá, deve ser declarada a liberdade do recluso e ser ordenada a sua libertação imediata para que seja feita Justiça.
2. A Senhora Juíza do TEP de Évora -J... prestou, em 11/12/2023, a informação a que se refere o art. 223.º n.º 1, do C.P.P, que passamos, igualmente, a transcrever:
1. O recluso AA, afecto ao Estabelecimento Prisional de ..., cumpre um somatório de penas no total de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, nos seguintes termos:
a) Pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, aplicada no âmbito dos autos de Processo n.º 834/17.7... do J3 do Juízo Local Criminal de ..., pela prática dos crimes de violência doméstica e violação de proibições;
b) Pena de 3 (três) anos de prisão, aplicada no âmbito dos autos de Processo n.º 779/15.5... do J1 do Juízo Local Criminal de ..., pela prática de um crime de violência doméstica;
2. O recluso está preso desde 30.07.2019;
3. As penas são de cumprimento sucessivo, tendo sido elaborado e homologado o cômputo de penas em execução sucessiva nos seguintes termos: o meio do somatório de penas ocorreu em 27.05.2022, os 2/3 ocorreram em 07.05.2023 e o termo está previsto para 27.03.2025 (foram descontados 3 dias de privação de liberdade de acordo com as liquidações de pena de ambos os processos);
4. O recluso atingiu metade da pena aplicada no processo n.º 834/17.7... no dia 28.11.2020;
5. Nessa data (28.11.2020) foi desligado do processo n.º 834/17.7... e ligado ao processo n.º 779/15.5... (o que se fez nos termos do disposto no artigo 63.º, n.o 1 do Código Penal;
6. O recluso atingiu o termo da pena aplicada no processo n.º 779/15.5... no dia 28.11.2023 (pena cumprida mas que ainda não foi declarada extinta);
7. Por essa razão, determinou-se o seu desligamento do processo n.º 779/15.5... e ligamento ao processo n.º 834/17.7... com referência ao dia 28.11.2023 (primeiramente, por lapso, com referência ao dia 27.11.2023);
8. Por se tratar de um cômputo de execução sucessiva de penas, entende o recluso que a pena aplicada no processo n.º 834/17.7... encontra-se cumprida na íntegra por ter sido atingida a sua metade; é este o fundamento da petição da providência de habeas corpus;
9. O termo das penas está previsto para 27.03.2025, foram já apreciados os pressupostos da liberdade condicional por referência ao meio e aos dois terços da soma das penas, não tendo a mesma sido concedida;
10. Será apreciada novamente a liberdade condicional, em renovação da instância, no prazo de um ano após a prolação da última sentença que apreciou os pressupostos da liberdade condicional, prevista para 19.04.2024.
3. Neste Supremo Tribunal, convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o defensor do arguido, teve lugar a audiência (art. 223.º n.º 3, do C.P.P.), com todas as formalidades legais, pelo que cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Começamos por referir que a providência de Habeas corpus1, ao contrário do que a designação parece sugerir, não teve origem na Roma antiga, mas na Inglaterra, em 1215, quando a nobreza impôs ao Rei João Sem Terra a Magna Carta Libertatum, com o objetivo de limitar os poderes reais2.
Com o tempo foi-se aperfeiçoando e a sua versão moderna surge, em 1679, com o famoso Habeas Corpus Amendment Act, que veio regulamentar o procedimento na área criminal, constituindo um eficaz instrumento no controlo da legalidade dos atos restritivos da liberdade individual.
Entre nós, a medida tem, como é sabido, desde há muito, dignidade constitucional, tendo sido introduzida pela Constituição de 19113. Presentemente o art. 31.º, da nossa Constituição, reza assim:
«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória».
No que concerne ao direito ordinário, o Código de Processo Penal vigente prevê, nos seus arts. 220.º e ss., o habeas corpus em virtude de detenção ilegal, em virtude prisão ilegal, os respetivos procedimentos processuais – assentes em grande informalidade e celeridade – e ainda o incumprimento da decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a petição, que é punido com as penas do crime de denegação de justiça e prevaricação.
Ora, do cotejo de todos estes preceitos, podemos extrair que esta providência, de cariz expedito, tem em vista salvaguardar a liberdade física, reagindo contra uma situação de abuso de poder4, por virtude de uma prisão ou detenção ilegal. Contudo, não constitui um recurso.
Como bem acentua Eduardo Maia Costa5, trata-se de uma providência, independente dos sistemas de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.
Naturalmente, o modo de impugnação por excelência das decisões judiciais é o recurso para um tribunal superior. O Habeas corpus, para ter razão de ser, deverá ter uma função diferente da dos recursos, servindo como instrumento da proteção da liberdade, quando os meios ordinários não sejam suficientemente expeditos para assegurar essa proteção urgente.
Deve servir, por conseguinte, para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente.
Porém, não tem uma natureza meramente residual, conforme observa Rodrigues Maximiano6, mas sim a natureza de uma providência extraordinária, abrangendo as situações de abuso, que são distintas das situações de decisão discutível.
Cingindo-nos mais concretamente ao Habeas corpus por virtude de prisão ilegal (art. 222.º), por ser o mais comum e ser também o caso da situação em apreço, podemos dizer que os seus fundamentos se reconduzem todos, ao fim e ao cabo, à ilegalidade da prisão: incompetência da entidade que a efetuou ou a determinou, ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite e excesso de prazos.
O n.º 2 do citado normativo consagra, como notam Gomes Canotilho e Vital Moreira7, uma espécie de ação popular, uma vez que a petição pode ser formulada pelo interessado ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, conquanto dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e apresentada à autoridade à ordem da qual se encontra preso o mesmo.
A limitação do gozo dos direitos políticos não diz, obviamente, respeito ao próprio, mas sim ao(s) terceiro(s) que decida(m) intervir.
Na esteira também da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça8, quando se aprecia a providência do Habeas corpus não se analisa o mérito da decisão que determinou a prisão, nem tão pouco os erros procedimentais (eventualmente, cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais), uma vez que esses devem ser apreciados em sede própria, através dos recursos, mas tão só incumbe decidir se ocorrem qualquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do C.P.P.
2. Feito este breve enquadramento histórico-legal da medida em questão e regressando à situação sub judice, podemos constatar, com base na certidão junta e nos demais elementos carreados aos autos, que o arguido, ora requerente, foi condenado numa pena de 2 anos e 8 meses de prisão, aplicada no âmbito do processo n.º 834/17.7..., do Juízo Local Criminal de ... (J3), pela prática dos crimes de violência doméstica e violação de proibições, e numa pena de 3 anos de prisão, no âmbito do processo n.º 779/15.5..., do Juízo Local Criminal de ... (J1), pela prática de um crime de violência doméstica.
Encontra-se o mesmo preso desde 30/07/2019, tendo sido elaborado e homologado o cômputo de penas, em execução sucessiva, nestes termos: o meio do somatório de penas ocorreu em 27/05/2022, os 2/3 ocorreram em 07/05/2023 e o termo está previsto para 27/03/2025, com o desconto de 3 dias de privação de liberdade, de acordo com as liquidações de pena de ambos os processos.
Atingiu metade da pena aplicada no referido processo n.º 834/17.7..., no dia 28/11/2020, tendo nessa data sido desligado do processo n.º 834/17.7... e ligado ao processo n.º 779/15.5... (o que foi feito nos termos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Cód. Penal).
Entretanto, atingiu o termo da pena aplicada no processo n.º 779/15.5... no dia 28.11.2023, apesar de ainda não ter sido declara extinta, sendo determinado o seu desligamento do processo n.º 779/15.5... e, de novo, o ligamento ao processo n.º 834/17.7..., com referência ao dia 28/11/2023, a fim de cumprir o que resta da pena aplicada nestes autos.
Resulta ainda dos autos que o termo das penas está previsto para 27/03/2025, tendo já sido apreciados os pressupostos da liberdade condicional, por referência ao meio e aos dois terços da soma das penas, não tendo a mesma sido concedida, devendo ser objeto de nova apreciação, em renovação da instância, no prazo de um ano após a prolação da última decisão que apreciou os pressupostos da liberdade condicional, que está prevista para 19/04/2024.
Acontece que, por se tratar de um cômputo de execução sucessiva de penas, defende o requerente que a pena aplicada no processo n.º 834/17.7... se encontra já cumprida, na íntegra, por ter sido atingida a sua metade.
Todavia, há que ter em consideração que a concessão da liberdade condicional9 está dependente da verificação, pelo Tribunal de Execução de Penas, dos pressupostos (de natureza formal e material) enumerados no artigo 61.º, do Cód. Penal, que podem ser assim sintetizados:
- Para ser concedida a meio da pena: se o juiz de execução se convencer que, analisado o caso concreto e a personalidade do preso, é de esperar que este retomará a sua vida sem cometer crimes e que a libertação do preso não vai perturbar a ordem e a paz social;
- Para ser concedida aos 2/3 da pena: já só é necessária a verificação do primeiro requisito anterior, ou seja, a previsão de que não vai cometer crimes.
- Nas condenações de penas superiores a seis anos, além das possibilidades de saída em liberdade condicional – a meio ou aos 2/3 da pena – o preso é sempre posto em liberdade condicional quando atingir 5/6 da pena.
- Em todos os casos: nunca ocorre a liberdade condicional antes de cumprido seis meses de prisão efetiva e nunca é decretada a liberdade condicional contra a vontade ou sem o consentimento do condenado.
Por outro lado, o art. 63.º, do mesmo diploma legal, estabelece os procedimentos a ter em conta em caso de execução sucessiva de várias penas.
Significa tal que a concessão da liberdade condicional, a meio da pena, não é automática ou obrigatória10, exigindo-se um juízo de prognose favorável - embora não tão exigente como no caso da suspensão da execução da pena de prisão - sobre o comportamento futuro do recluso em liberdade, nisto residindo o pressuposto material da liberdade condicional.
Por outras palavras, a liberdade condicional poderá ser concedida, quando estiver cumprida metade da pena, no mínimo de 6 meses, se houver razões para crer que o condenado não praticará crimes e a libertação não ameaçará a paz social.
Como refere, a este propósito, o Professor Figueiredo Dias11, a concessão da liberdade condicional, uma vez cumprida metade da pena, constitui um poder para o tribunal, não sendo, contudo, um poder discricionário, mas um poder-dever, um poder vinculado à verificação da totalidade dos pressupostos, formais e substanciais, de que a lei faz depender a concessão.
Ora, na situação concreta, como vimos, o termo das penas está previsto para 27/03/2025, tendo já sido apreciados pelo TEP os pressupostos da liberdade condicional, ao meio e aos dois terços da soma das penas, não tendo a mesma sido concedida e voltará, novamente, a ser objeto de apreciação, em renovação da instância, no prazo de um ano após a prolação da última decisão que apreciou os pressupostos da liberdade condicional, prevista para 19/04/2024.
Nesta conformidade, tudo ponderado, consideramos que não se verifica, in casu, qualquer excesso de prisão para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial nem qualquer outra situação prevista no art. 222.º n.º 2, do C.P.P., que, aliás, nem sequer foi alegada, pelo que não pode, deste modo, a providência requerida proceder, por falta de sustentação legal.
III. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em
a. indeferir, por falta de fundamento, a providência de Habeas corpus requerida pelo arguido AA (art. 223.º n.º 4 a), do C.P.P.); e
b. condenar o mesmo nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos da Tabela III, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 20 de dezembro de 2023
(Processado e revisto pelo Relator)
Pedro Branquinho Dias (Relator)
Ernesto Vaz Pereira (Adjunto)
Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)
Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)
_____
1. Forma abreviada da expressão latina Habeas corpus ad subjiciendum – Que tenhas o teu corpo para apresentar ao tribunal.
2. Para uma visão mais desenvolvida sobre a sua origem histórica, vejam-se, com interesse, Eduardo Maia Costa, Habeas corpus: passado, presente, futuro, Revista Julgar n.º 29, Maio-Agosto de 2016, pg. 219 e ss., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pg. 260 e ss., e Pedro Branquinho Ferreira Dias, Comentário a um acórdão, Revista do Ministério Público, Ano 28, n.º 110, pg. 216 e ss.
3. Em termos de lei ordinária, viria a ser instituída pelo DL n.º 35 043, de 20/10/1945.
4. Garantia privilegiada do direito à liberdade, na expressão feliz de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. revista, pg. 508.
5. Loc. cit., pgs. 236 e 237.
6. In Direito e Justiça, Vol. XI, T. 1, pg. 197.
7. Ob. cit., pg. 509.
8. Cfr., entre muitos, os acórdãos de 27/9/2023, no Proc. n.º 2390/06.2PBBRG-G.S1, de 20/9/2023, Proc. n.º 344/14.4GBSSB-A.S1, de 9/3/2022, Proc. n.º 816/13.8PBCLD-A.S1, de 28/4/2021, Proc. n.º 72/18.1T9RGR-A.S1, e de 18/11/2020, Proc. n.º 300/18.3JDLSB-E.S1, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Ernesto Vaz Pereira, Maria do Carmo Silva Dias, Lopes da Mota, Ana Barata Brito e Nuno Gonçalves, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
9. Saliente-se que o instituto da liberdade condicional não constitui uma medida de clemência ou de recompensa de boa conduta, mas, antes, um incidente da execução da pena de prisão, visando um período de transição entre a prisão e a liberdade, que permita ao condenado uma adaptação gradual à nova realidade e a consequente adequação da sua conduta aos padrões sociais, necessariamente fragilizada pelo período de reclusão a que esteve sujeito. Pode ser aplicada em 3 modalidades: simples, subordinada ao cumprimento de regras de conduta ou com regime de prova. Sobre a evolução histórica e politico-criminal do instituto, veja-se, com interesse, Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do Crime, AEQUITAS EDITORIAL NOTÍCIAS, 1993, pg. 527 e ss., e os estudos A Liberdade Condicional Obrigatória, sua existência e fundamentação, de Cássia Gomes da Silva, Universidade de Coimbra, Faculdade de Direito, 2.º Ciclo de Estudos em Direito, Coimbra 2013, pg. 24 e ss., e Considerações sobre o regime da Liberdade Condicional, de Inês Sá Rodrigues, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Escola de Lisboa, 2020, pg. 10 e ss.
10. Só se a pena aplicada for superior a 6 anos é que o condenado é colocado em liberdade condicional logo que tiver cumprido 5/6 da mesma.
11. Ob. cit., pg. 538 e ss.
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Acordão do Supremo Tribunal Administrativo
Acórdãos STAAcórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01645/03
Data do Acordão:26/01/2005
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:BAETA DE QUEIROZ
Descritores:JUROS INDEMNIZATÓRIOS.
ERRO IMPUTÁVEL AOS SERVIÇOS.
TAXA.
Sumário:Na vigência do Código de Processo Tributário, os juros indemnizatórios devidos na sequência de impugnação judicial que anulou o acto de liquidação, no qual ocorreu erro imputável aos serviços, devem ser contados à taxa do artigo 559º do Código Civil, já que o artigo 24º do Código de Processo Tributário nem estabelece essa taxa, nem, quanto a ela, remete para as leis tributárias.
Nº Convencional:JSTA00062163
Nº do Documento:SAP2005012601645
Data de Entrada:22/10/2003
Recorrente:DIRGER DOS REGISTOS E NOTARIADO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC STA DE 2004/03/24.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC JULGADO.
Legislação Nacional:CPTRIB91 ART24.
CCIV66 ART559.
Aditamento:
Texto Integral
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Acordão do Supremo Tribunal Administrativo
Acórdãos STAAcórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01237/04
Data do Acordão:13/01/2005
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ADÉRITO SANTOS
Descritores:RECURSO HIERÁRQUICO.
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO.
PROCESSAMENTO DE ABONOS
Sumário:I - Constitui acto administrativo, passível de impugnação na via hierárquica, o processamento de abonos, correspondentes ao novo valor do diferencial de integração de determinado funcionário da Direcção Geral das Contribuições e Impostos no novo sistema retributivo, em aplicação do Despacho Conjunto nº 943/99, de 9.3.99, dos Secretários de Estado do Orçamento, dos Assuntos Fiscais e da Administração Pública e Modernização Administrativa, constitui acto administrativo, passível de impugnação na via hierárquica.
II – O despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, que indeferiu recurso hierárquico, interposto de um tal acto de processamento de abonos, por entender que tinha por objecto aquele Despacho Conjunto, incorreu em erro nos pressupostos, que implica a respectiva anulação.
Nº Convencional:JSTA00061519
Nº do Documento:SA12005011301237
Data de Entrada:19/11/2004
Recorrente:SE DOS ASSUNTOS FISCAIS
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:LPTA85 ART28 ART29.
CPA91 ART9.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC43299 DE 2000/11/23.
Aditamento:
Texto Integral
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Acórdãos STAAcórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:033942A
Data do Acordão:27/05/2004
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:CÂNDIDO DE PINHO
Descritores:EXECUÇÃO DE SENTENÇA.
OFENSA DE CASO JULGADO.
NULIDADE.
CAUSA LEGÍTIMA DE INEXECUÇÃO.
Sumário:I - No processo de execução o tribunal administrativo apenas aprecia a actuação administrativa posterior à sentença exequenda quanto aos aspectos referentes à execução, isto é, quanto à observância do caso julgado.
II - Assim, se em execução de sentença vierem a ser praticados actos em ofensa do caso julgado, a sua nulidade pode ser declarada, tanto em sede de execução (art. 9º, nº2, do DL nº 256-A/77, de 17/06), como em sede de recurso contencioso autónomo (art. 9º, nº3, cit. dip.).
III - Porém, se vier a ser praticado um acto renovador eivado de novas causas de invalidade que não faziam parte do anulado, então a sua sindicância já só poderá ser feita em recurso contencioso autónomo.
IV - Em execução de julgado anulatório de um acto de adjudicação de empreitada, não se imporá nova adjudicação se, entretanto, a empreitada tiver sido concluída.
Nesse caso, há "causa legítima de inexecução", somente geradora de indemnização em acção própria ou a reclamar nos termos do art. 7º do citado diploma.
V - Mas, se a Administração, para além do que seria esperado e lógico, mesmo assim, vier a proceder a nova apreciação das propostas e praticar um novo acto de adjudicação, não se poderá falar mais em "causa legítima de inexecução", mas sim em execução do julgado.
Em tal hipótese, o pedido executivo terá que ser indeferido.
Nº Convencional:JSTA00060562
Nº do Documento:SA12004052733942A
Data de Entrada:16/03/2000
Recorrente:A...
Recorrido 1:SE DAS OBRAS PÚBLICAS
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:EXECUÇÃO DE JULGADO.
Objecto:AC SUBSECÇÃO DO CA.
Decisão:INDEFERIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - EXECUÇÃO DE JULGADO.
Legislação Nacional:DL 256-A/77 DE 1977/06/17 ART7 ART9 N2 N3 ART10 N4.
DL 104/97 DE 1997/04/28 ART2 ART23.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC39205 DE 1997/10/01.; AC STA PROC38470 DE 1999/01/20.; AC STA PROC45381-A DE 2001/01/18.; AC STAPLENO PROC44140-A DE 2003/03/13.
Aditamento:
Texto Integral
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Acordão do Supremo Tribunal Administrativo
Acórdãos STAAcórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:045375
Data do Acordão:15/09/1999
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:GOUVEIA E MELO
Descritores:COMPANHIA DOS CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES.
CONCURSO PÚBLICO.
EMPRESA PÚBLICA.
ACTO DE GESTÃO PRIVADA.
FORNECIMENTO DE BENS.
Sumário:I - Na ausência de preceito legal expresso de alcance geral ou do respectivo estatuto em contrário, as empresas públicas encontram-se sujeitas, no que aos actos da respectiva gestão diz respeito, ao direito privado, comungando da correspondente natureza os actos jurídicos por elas praticados no aludido circunstancialismo.
II - Encontra-se nessas condições o concurso público aberto pelos Caminhos de Ferro Portugueses - CP - destinado ao fornecimento à mesma de material circulante.
III - Consequentemente assume natureza jurídico-privada a deliberação do conselho de gerência da CP que no âmbito do aludido concurso decidiu excluir a proposta nele apresentada por certo concorrente.
IV - Daí que os tribunais administrativos sejam incompetentes em razão da matéria para conhecer do recurso contencioso que tenha por objecto aquele acto (art. 4º, nº 1, al. f), do ETAF).
Nº Convencional:JSTA00053019
Nº do Documento:SA119990915045375
Data de Entrada:07/09/1999
Recorrente:CAF-CONSTRUCCIONES Y AUXILIARES DE FERROCARRILES SA
Recorrido 1:CONSELHO DE GERÊNCIA DE CP EP
Recorrido 2:OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:DESP TAC LISBOA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM ECON - EMPR PUBL.
Legislação Nacional:DL 134/98 DE 1998/05/15 ART2 ART3.
DL 109/97 DE 1997/03/25 ART1 ART2 ART3 N1.
ETAF84 ART4 N1 F.
LPTA85 ART4 N1 ART4 N4.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC10112 DE 1977/02/24 IN AP-DR DE 1980/06/30 PAG413.
Aditamento:
Texto Integral
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Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Acórdãos TRPAcórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0130057
Nº Convencional: JTRP00030199
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: VALOR DA CAUSA
EFEITOS
RECONVENÇÃO
ALTERAÇÃO
FORMA DE PROCESSO
PRAZO
RÉPLICA
Nº do Documento: RP200102080130057
Data do Acordão: 08/02/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 3 J CIV OLIVEIRA AZEMÉIS
Processo no Tribunal Recorrido: 173/00
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC95 ART305 N1 N2 ART502 N3.
Jurisprudência Nacional: AC STJ DE 1962/11/13 IN BMJ N121 PAG216.
Sumário: I - Os efeitos da elevação do valor na forma do processo verificam-se automaticamente, logo após a formulação da reconvenção, não dependendo da prolação do despacho sobre a admissibilidade desse pedido do réu.
II - Assim, se a acção inicialmente sumária passa a ordinária por virtude daquele aumento de valor, o prazo de apresentação da réplica é de 30 dias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Acórdãos STJAcórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2808/19.4T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 1. ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
PRESSUPOSTOS
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MODIFICAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
EXONERAÇÃO
ADMINISTRADOR DO CONDOMÍNIO
JUSTA CAUSA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
Data do Acordão: 19/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA, CONFIRMANDO-SE O DESPACHO DO RELATOR
Sumário :
I – O aditamento de um ponto à factualidade provada, que não teve reflexo na decisão final, com o objetivo de explicitar o conteúdo de um documento junto aos autos que não foi impugnado, não é apto a descaraterizar a dupla conformidade.
II – Não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme impeditivo do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que a sentença e o acórdão apresentem fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial.
III – A diferença de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido não é essencial, se o acórdão recorrido decidiu negar a indemnização à autora, por ter entendido que da matéria de facto decorre que houve justa causa de exoneração da administradora de condomínio, nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, e a sentença, prescindindo de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa (mas tendo fixado os factos integradores do conceito de justa causa), entendeu, com base no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, que a exoneração exercida através de deliberação da assembleia geral de condóminos, desde que não impugnada, não faz nascer na esfera jurídica da autora o direito de indemnização.
IV – Para apreender o sentido da fundamentação, é necessário proceder a uma interpretação dos fundamentos da sentença e do acórdão recorrido.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Conferência do Supremo Tribunal de Justiça
I – Relatório
1. QUESTÕES & SUGESTÕES, LDA., intentou ação declarativa de condenação contra CONDOMÍNIO DO CLUBE PRAIA ... - BLOCO I, representado em juízo pela sua administradora A..., Lda., pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de €119.925,00, acrescida de juros calculados desde o dia em que for efetuada a citação, contados à taxa legal aplicável às dívidas comerciais, por o réu ser uma pessoa equiparada a uma pessoa coletiva, e contados até ao dia em que o pagamento da dívida for integralmente efetuado.
2. Regularmente citado, o Réu contestou, impugnando a factualidade alegada, invocando que apesar de existir justa causa, a destituição não carecia sequer dessa invocação, e deduziu reconvenção, pedindo a condenação da autora/reconvinda «a pagar ao réu a quantia global de 221.486,95€ pelos danos patrimoniais que lhe foram causados pela autora; e pelos prejuízos que vierem a resultar da improcedência dos processos executivos devido à prescrição verificada pelo não cumprimento da sua função de cobrar as receitas, cujo apuramento do valor concreto dos danos será feita em sede de liquidação de sentença».
3. A sentença do tribunal de 1.ª instância decidiu o seguinte:
«Pelo exposto, julgo a ação totalmente improcedente e o pedido reconvencional parcialmente procedente, e, em consequência, decido:
a) Absolver o réu CONDOMÍNIO DO CLUBE PRAIA ... - BLOCO I, do pedido formulado pela autora QUESTÕES & SUGESTÕES, LDA.;
b) Condenar a autora/reconvinda a restituir ao réu/reconvinte a quantia correspondente à retribuição dos meses de julho a setembro de 2019, num total de € 9225 (nove mil duzentos e vinte cinco euros);
c) Absolver a autora /reconvinda do restante pedido reconvencional.
Custas a cargo das partes, na proporção do decaimento».
4. Inconformada, a Autora apelou, tendo o Tribunal da Relação decidido, sem qualquer voto de vencido, o seguinte:
«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida».
5. QUESTÕES & SUGESTÕES, LD.ª, na qualidade de Recorrente, tendo sido notificada do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que confirmou a sentença do tribunal de 1.ª instância, e com ele não se conformando, veio interpor recurso de revista ordinária, nos termos dos artigos 671.º, n.ºs 1 e 3, e 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC, em que peticiona a revogação do acórdão recorrido.
6. Tendo o réu nas suas contra-alegações de recurso suscitado a questão prévia da não admissibilidade da revista, a Relatora proferiu despacho a notificar a autora para se pronunciar sobre esta questão prévia, ao abrigo do artigo 655.º, n.º 2, do CPC, vindo, após ouvir a autora, a proferir despacho de não admissibilidade, por entender verificada a dupla conformidade impeditiva da admissão do recurso de revista.
7. Questões e Sugestões, Lda.ª, notificada da decisão singular de não admissibilidade do recurso de revista, por si interposto, veio apresentar reclamação para a Conferência, que aqui se considera integralmente transcrita, entendendo que as decisões das instâncias se basearam em fundamentação essencialmente diferente, peticionando que seja procedente a reclamação e substituída a decisão impugnada por outra que admita o recurso de revista ordinária.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
1. O teor do despacho de não admissibilidade do recurso foi o seguinte:
«O objeto da presente decisão é a resolução da questão de saber se a sentença do tribunal de 1.ª instância e o Acórdão da Relação adotaram uma fundamentação essencialmente distinta, ficando quebrada a dupla conformidade para o efeito de admissibilidade do recurso de revista geral.
Vejamos:
Entende a autora que o Tribunal da Relação entendeu que o ónus da prova dos requisitos de destituição da empresa de administração de condomínios cabia aos réus, enquanto a sentença do tribunal de 1.ª instância entendeu que essa destituição podia ser unilateral e sem necessidade de demonstração das motivações.
O Tribunal da Relação desenvolveu o tema do ónus da prova, distinguindo o regime do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, sustentando que quando a administrador de condomínio é uma empresa especializada é sempre necessário alegar e provar que houve justa causa de destituição. Concluiu confirmando integralmente a sentença de 1.ª instância, ainda que com uma fundamentação parcialmente diferente.
Já a sentença de 1.ª instância não abordou a questão do ónus da prova da justa causa para a destituição e aplicou apenas o n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, sem o conjugar com o n.º 3 do mesmo preceito e sem distinguir consoante a exoneração se reporta a uma empresa ou a um dos condóminos, como fez o Tribunal da Relação.
Todavia, a decisão foi exatamente a mesma, os factos que a sustentam também, o enquadramento jurídico foi idêntico: a interpretação do artigo 1435.º do Código Civil.
As diferenças de fundamentação assinaladas pela recorrente não foram relevantes para a decisão de direito, têm o mesmo enquadramento jurídico-legal, e não se revestem de essencialidade, pois, na verdade, a sentença do tribunal de 1.ª instância foi muito sintética nos seus fundamentos, não se podendo afirmar que a sua posição de direito seja distinta, em aspetos essenciais, da posição assumida pelo Tribunal da Relação, que desenvolveu mais o tratamento a dar à questão de direito em causa. O que releva, para o efeito, é que os factos do caso demostram inequivocamente que ficou provada a existência de justa causa para a destituição (na questão essencial a decisão das instâncias foi igual), e que este Supremo não tem poderes para os modificar. Assim, qualquer que seja a posição adotada na querela desenvolvida pelo Tribunal da Relação sobre a diferença entre o alcance do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 1435.º, sempre se consideraria lícita a destituição da autora sem direito de indemnização, tal como decidiram as instâncias, não sendo claro, nem inequívoco que o fundamento tenha sido diferente, muito menos essencialmente diferente como exige a lei para considerar quebrada a dupla conformidade.
Uma vez que a recorrente não interpôs, em via subsidiária, recurso de revista excecional, não se envia o processo para a Formação e decide-se não admitir o recurso de revista como revista geral ou ordinária».
2. Sustenta a reclamante que o despacho impugnado é contraditório nos seus termos na medida em que, por um lado, reconhece que o Tribunal da Relação apresenta uma fundamentação parcialmente distinta da aduzida na sentença, e, por outro, afirma que o enquadramento jurídico é idêntico.
3. Vejamos:
Verifica-se uma dupla conforme nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, nos casos em que o acórdão da Relação confirma integralmente, sem voto de vencido, a decisão do tribunal de 1.º instância.
O artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC dispõe o seguinte: «Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.»
4. Não há dúvida nem carece de especial labor demonstrativo que o dispositivo do acórdão da Relação confirmou, integralmente e sem voto de vencido, a sentença apelada.
Todavia, para apreciar acerca da existência ou não de dupla conformidade importa analisar se a sentença e o acórdão da Relação apresentam uma fundamentação idêntica ou essencialmente diferente, sendo que nesta última hipótese considera-se que fica quebrada a dupla conformidade e o recurso de revista é admissível.
5. Assim, para analisar a questão suscitada na presente reclamação – saber se a revista é inadmissível por dupla conformidade – importa indagar se a sentença do tribunal de 1.ª instância e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que confirmou integralmente a condenação do ora reclamante nos termos decididos pela sentença, utilizam para chegar à mesma decisão uma fundamentação essencialmente diferente (artigo 671.º, n.º 3, do CPC), de acordo como entendimento que a jurisprudência tem feito destes conceitos indeterminados. Ou seja, só estamos perante uma quebra dessa dupla conformidade se a sentença e o acórdão recorrido trilharam percursos jurídicos diversos, sendo irrelevantes as diferenças de pormenor ou a mera densidade ou desenvolvimento do discurso fundamentador.
Assim, «Há fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada» (cfr. Acórdão de 31-05-2016 - Revista n.º 109/14.3T8CMN.G1.S1).
«Para efeitos de verificação da dupla conformidade a que alude o art. 671.º, n.º 3, do CPC, deve considerar-se que as fundamentações são essencialmente diversas quando seguem percursos distintos, acolhendo raciocínios jurídicos diferentes, não quando divergem em pormenores ou em aspetos secundários, sem que se possa afirmar que seguiram linhas de pensamento autónomas» (cfr. Acórdão de 29-04-2021, Revista n.º 115/16.3T8PRG.G1.S1).
A jurisprudência também destaca que a desconformidade entre as decisões tem de circunscrever-se à matéria de direito, não implicando a divergência no julgamento da matéria de facto, se não teve repercussão na análise das questões de direito, a discrepância decisória geradora da admissibilidade da revista ordinária (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-02-2018, proc. n.º 2639/13.5TBVCT.G1.S1).
6. Regressando ao caso, comparemos então os fundamentos da sentença e do Acórdão do Tribunal da Relação.
A questão central do processo residiu numa deliberação da assembleia de condóminos, que exonerou a administradora do condomínio das funções que vinha exercendo.
O cerne da divergência que opõe as partes diz respeito ao pedido indemnizatório da administradora de condomínios, aqui recorrente, e ao cumprimento ou não do ónus da prova pelo réu da existência de justa causa para a exoneração da autora da administração do condomínio réu.
6.1. Quanto aos fundamentos de facto, o acórdão da Relação aditou à factualidade dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância o seguinte facto:
«10-a5. Na ata dessa assembleia geral extraordinária de condóminos consta «no ponto Um, destituição com efeitos imediatos da administração de condomínio, o presidente da mesa fez uma exposição sobre as causas que levaram à convocação da assembleia extraordinária. Na assembleia foram enunciadas várias razões pelas quais os condóminos consideram que a atual administração de condomínio deve ser destituída ou exonerada com efeitos imediatos, que se prendem com o não cumprimento dos deveres de informação, de diligência, de acessibilidade, de imparcialidade, de respeito, que impendem sobre a administração de condomínio, bem como os condóminos entendem que as funções da administração não têm sido cumpridas ou prestadas de forma adequada».
6.2. O facto aditado não introduziu nada de inovatório na fundamentação, nem teve qualquer consequência relevante na análise da questão de direito, pois que se limitou a transcrever o que constava numa ata junto ao processo que se reportava à necessidade sentida pelos condóminos de destituir ou exonerar a empresa que administrava o condomínio, por incumprimento de deveres. Como esclareceu o próprio acórdão recorrido, tratou apenas de verter para a matéria de facto o que constava da ata, por se tratar de prova documental, que não tendo sido validamente impugnada, o tribunal sempre poderia considerar ao abrigo do disposto nos artigos 663.º, n.º 2, e 607.º, n.º 4, do CPC.
6.3. Em conclusão, o aditamento de um ponto à factualidade provada, que não teve reflexo na decisão final, com o objetivo de explicitar o conteúdo de um documento junto aos autos, que não foi impugnado, não é apto a descaraterizar a dupla conformidade.
6.4. Relativamente à matéria de direito, a decisão do acórdão recorrido baseou-se na aplicação do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, relativo à exoneração do administrador de condomínio, concluindo que o réu logrou demonstrar que houve justa causa para a exoneração, não tendo por isso de pagar qualquer indemnização:
« (…)
Nesse caso, mercê do n.º 3 do artigo 1435.º do CC, é claro que ao condómino incumbe o ónus de alegar e provar factualidade que integre qualquer um dos dois fundamentos que podem servir de base à possibilidade excecionalmente conferida pelo mencionado preceito, de exoneração contenciosa do administrador: a prática de irregularidades ou a atuação com negligência no exercício das funções que lhe foram cometidas, conforme previsto no segmento final do referido artigo legal
A questão que os autos convocam, está em saber se, por não constar no n.º 1 do preceito idêntica exigência, a exoneração do administrador pela assembleia de condóminos é ou não livre.
Na sentença recorrida, acolheu-se a posição expressa pelo réu condomínio de que, competindo aos condóminos, reunidos em assembleia, decidir a eleição e exoneração do administrador, “sem que a norma exija a necessidade de apresentação de qualquer fundamento”, já que só nas situações do n.º 3, “é que deve ser demonstrado fundamento para a exoneração, a justa causa, quando se mostre que praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções”. Nesse pressuposto, concluiu que no “caso dos autos, a assembleia deliberou, a deliberação não veio a ser impugnada e, por isso, tem-se como assente, sem que tenha surgido na esfera jurídica do réu a obrigação de indemnizar a autora”.
Sendo certo que, aparentemente, a lei distingue ambas as situações, referindo a necessidade de invocação de justa causa para a destituição do administrador apenas nas situações em que a mesma não seja deliberada pela assembleia, e seja peticionada ao tribunal, a verdade é que, casos existem em que outros princípios do ordenamento jurídico, designadamente da liberdade contratual, eficácia dos contratos e boa fé, interpelam a uma interpretação que não se contenha dentro da literalidade do preceito e se adeque às distintas situações em presença, tratando de forma diversa o que é efetivamente diferente.
Assim, a afirmação de que o administrador pode ser exonerado pela assembleia a qualquer tempo, sem necessidade de invocação de justa causa, não significa sempre que a exoneração sem justa causa não possa dar lugar a indemnização. Por outras palavras, uma coisa é a assembleia dos condóminos poder fazer cessar unilateralmente o mandato conferido ao administrador antes do seu termo, outra é que esse seja uma espécie de poder discricionário que nunca confere à contraparte, independentemente da sua qualidade, o direito a indemnização.
(…)
Com efeito, por exemplo, se o órgão executivo que decide da vida do condomínio, entender exonerar o administrador-condómino, que gratuitamente exerce essas funções, tomando validamente tal deliberação, considerando os seus poderes legalmente conferidos pelo n.º 1 do artigo 1435.º do CC, não se vislumbra que o não possa fazer, quando o entender, sem necessidade de invocar qualquer causa para essa manifestação de vontade e sem que incorra em qualquer obrigação de o indemnizar. Porém, se o administrador não for um condómino, mas antes, como ocorre na espécie, um terceiro ao condomínio, que exerça tais funções por lhe ter sido conferido esse mandato também no seu interesse, então já não cremos que tal princípio se aplique.
Este é, aliás, o ensinamento que colhemos de ARAGÃO SEIA27, quando distingue os casos, enfatizando que “a assembleia pode deliberar livremente a exoneração do administrador-condómino, sem que tenha necessidade de alegar razões para o fazer, o que, convenhamos, não será muito normal. E pode fazê-lo na assembleia convocada para discussão e apreciação das contas como sanção para a má administração efectuada, sem que haja necessidade de a exoneração constar da ordem de trabalho; trata-se de uma sequência da prestação e aprovação ou não das contas.
Quanto ao terceiro, se o mandato tiver sido conferido também no seu interesse – e é-o se se tratar de uma entidade especializada em administração de condomínios que, por isso, aufere remuneração, não pode ser revogado sem o seu acordo, salvo ocorrendo justa causa.” (o itálico de destaque é nosso)
Trata-se precisamente da situação que ocorre no caso que nos ocupa, donde não sufragamos o entendimento acolhido na decisão recorrida, a este respeito, tornando-se, por isso, inútil a apreciação da questão da inconstitucionalidade do preceito interpretado no sentido de que a exoneração da administração do condomínio pela assembleia de condóminos, é sempre livre a todo o tempo e não dá lugar a indemnização, ainda que não ocorra justa causa.
In casu, configurando a eleição da empresa autora, que leva a cabo a administração de condomínios profissionalmente, a concomitante celebração de um contrato de prestação de serviços, ao qual se aplicam, com as necessárias adaptações, as disposições sobre o contrato de mandato, na modalidade de mandato oneroso, com representação (artigos 1154.º a 1156.º, 1158.º, n.º 2, todos do CC), contrato que estava vigente à data em que, por carta de 17.06.2019, o condomínio ora recorrido, comunicou à empresa ora recorrente, que por deliberação da assembleia extraordinária de condóminos, reunida no dia 18 de maio de 2019, havia deliberado a exoneração da autora da qualidade de administradora do condomínio, para a qual havia sido eleita pela assembleia de condóminos que teve lugar no dia 14 de dezembro de 2017, para exercer as referidas funções pelo período de cinco anos, com início no dia 1 de janeiro de 2018 e termo a 31 de dezembro de 2021, dúvidas não existem que com aquela exoneração fez cessar o contrato que vinculava ambas as partes unilateralmente antes do respetivo termo28.
Consequentemente, tal como precisa o Conselheiro ARAGÃO SEIA nestas circunstâncias, “a exoneração pode ditar a obrigação de indemnização por parte do condomínio, pelo prejuízo que o terceiro vier a sofrer, nos termos do artigo 1172.º”, mais concretamente da sua alínea d), aplicável se a revogação proceder do mandante, e versar sobre mandato oneroso, sempre que o mandato tenha sido conferido por certo tempo ou para determinado assunto, ou que seja revogado sem a antecedência conveniente, salvo ocorrendo justa causa, conforme decorre do n.º 2 do artigo 1170.º, ambos do CC.
Na espécie, a autora deduziu a pretensão de lhe serem satisfeitas pelo condomínio réu todas as retribuições que a mesma receberia se continuasse a exercer as suas funções até ao final do mandato, invocando apenas que a sua destituição foi deliberada sem justa causa ou fundamento.
Por seu turno, na contestação, a Ré alegou um conjunto de factos que, a verificarem-se, integrariam a existência da justa causa, que afasta a obrigação de indemnizar a autora.
Sabendo que não é pacífica a questão da distribuição do ónus da alegação e prova da factualidade atinente à existência de justa causa, cremos ser correta a distribuição efetuada pelas partes.
Entende a autora que da ata não consta a factualidade da qual se extraia a existência de justa causa para a destituição.
Porém, não cremos que, na perspetiva que temos da correta distribuição do ónus da prova, nos termos assinalados, tal tenha qualquer relevância.
Com efeito, na ata da assembleia em que destituiu a autora, o condomínio fez constar a referência a que ali foram enunciadas «várias razões pelas quais os condóminos consideram que a atual administração de condomínio deve ser destituída ou exonerada com efeitos imediatos, que se prendem com o não cumprimento dos deveres de informação, de diligência, de acessibilidade, de imparcialidade, de respeito, que impendem sobre a administração de condomínio, bem como os condóminos entendem que as funções da administração não têm sido cumpridas ou prestadas de forma adequada».
Cremos ser bastante, porquanto, aquando da notificação da sua exoneração, a autora ficou a conhecer que o condomínio considerava ter motivos para deliberar a extinção do contrato entre ambos vigente, desde logo pelo segmento final vertido na ata a respeito da avaliação que os condóminos faziam do (pelo menos) defeituoso cumprimento do contrato.
Não se conformando com a imputação genérica efetuada, a Autora, sem qualquer prejuízo para a sua posição jurídica, instaurou a ação com a simples menção acima reproduzida, devolvendo à ré, o ónus de alegação e prova da factualidade integrante da invocada justa causa.
Vejamos, pois, se o réu logrou demonstrar factos que integrem o conceito de justa causa que, sendo um conceito indeterminado exige a aplicação valorativa do caso concreto, encontrando lugar paralelo que aponta o sentido da sua densificação no n.º 3 do artigo 1435.º, devendo, pois, o condomínio aduzir factualidade que demonstre que a administração exonerada praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções.
(…)
In casu, os comportamentos que podem fundar a existência de justa causa dão obviamente anteriores à deliberação, pelo que, com maior relevância, o condomínio réu alegou e provou os factos constantes dos pontos 26, 27, 29 e 30, dos quais decorre que, para além de não ter providenciado pela jardinagem, manutenção e segurança das partes comuns de forma considerada aceitável por parte dos condóminos, ocorrendo a entrada de estranhos do prédio, sem controlo, ainda mais impressivamente, a autora não providenciou pela existência de seguro do prédio, obrigação que, como já vimos sobre si impendia, e que assume a maior relevância, nomeadamente em caso de sinistro (veja-se o que dispõe o artigo 1428.º do CC). Acresce que, durante o período em que administrou o condomínio, a autora calculou as prestações isentando a condómina proprietária das frações designadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, e “F” que representam 30,325, e celebrou contratos de trabalho sem termo que não foram aprovados pela assembleia de condóminos, nomeadamente assumindo a antiguidade de empregados, pelo menos, desde 2012, sendo que os mesmos exerciam funções também para os Blocos desde essa data. Significa esta factualidade, não apenas que a autora não cumpriu obrigações que sobre si impendiam (vg. a que decorre da alínea c) do artigo 1436.º, respeitante à verificação da existência do seguro), como extravasou as respetivas funções (cfr. artigos 1430.º e 1436.º do CC), isentando, sem deliberação da assembleia, o pagamento dos encargos de conservação e fruição (artigo 1424.º do CC), devidos por um dos condóminos, que detém mais de 30% da proporção do valor das frações, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 1424.º do CC, e assumindo encargos com a celebração de contratos de trabalho, que igualmente também não foram aprovados pela assembleia de condóminos.
Ora, ao administrador do condomínio estão cometidas as funções elencadas no artigo 1436.º do CC e outras que lhe sejam atribuídas pela assembleia.
Não lhe tendo esta cometido à administradora assunção dos encargos em causa, que obrigam o condomínio futuramente, nem tendo deliberado a redução da receita, tal como decidida pela administração ao isentar de quotas condómino com tão elevada proporção nas partes comuns, violou de forma grave os deveres legais e contratuais que sobre si impendiam atenta a específica função exercida, de tal forma que não tornou inexigível ao condomínio a manutenção da relação contratual.
Conclui-se, portanto, pela existência de justa causa de exoneração, que constitui facto impeditivo do direito de indemnização invocado pela autora, tornando consequentemente inútil apreciar se a sua alegação era ou não bastante à procedência da pretensão formulada.
(…)»
6.5. Já a sentença do tribunal de 1.ª instância, como esclarece o acórdão recorrido, não se pronunciou sobre a existência ou não de justa causa para a exoneração, pois entendeu que este ato não carece de se basear em justa causa para ser lícito praticá-lo, não tendo por isso surgido na esfera jurídica da administradora de condomínio qualquer direito de indemnização:
«Daqui resulta que compete aos condóminos, reunidos em assembleia (cuja regulação, incluindo quanto ao tempo, está prevista nos arts. 1431.º e 1432.º do Código Civil), decidir a eleição do administrador (neste caso, pelo período de cinco anos), mas também exonerá-lo, sem que a norma exija a necessidade de apresentação de qualquer fundamento.
Considerando que existem regras para a aprovação de uma proposta e convertê-la em deliberação, pode suceder que, não sendo aprovada, qualquer um dos condóminos possa requerer a exoneração do administrador por outra via e aí, em minoria, qualquer condómino pode vir a Tribunal requerer a exoneração judicial do administrador. Só nesta situação é que deve ser demonstrado fundamento para a exoneração, a justa causa, quando se mostre que praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções – art. 1433.º, n.º 3.
No caso dos autos, a assembleia deliberou, a deliberação não veio a ser impugnada e, por isso, tem-se como assente, sem que tenha surgido na esfera jurídica do réu a obrigação de indemnizar a autora».
6.6. Para apreender o sentido da fundamentação, é necessário proceder a uma interpretação dos fundamentos da sentença e do acórdão recorrido.
Ora, confrontadas as fundamentações de direito das instâncias, verifica-se que ambas se reportam às consequências indemnizatórias do ato de exoneração da administradora de condomínio, tendo ambas decidido pela inexistência de qualquer indemnização.
O tribunal de 1.ª instância baseou essa decisão no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil e na circunstância de ninguém ter impugnado a deliberação de exoneração.
Já o Tribunal da Relação, analisando com mais profundidade a questão, entendeu que a exoneração sem invocação de justa causa não significa sempre que a exoneração não possa dar lugar a indemnização, tendo optado por fundamentar a não concessão de qualquer direito de indemnização à autora na existência de justa causa para a exoneração nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, porque os factos integradores do conceito se encontram provados (pontos 26, 27, 29 e 30 da matéria de facto provada).
Como se admitiu no despacho reclamado a fundamentação das instâncias é parcialmente distinta, pois que a sentença do tribunal de 1.ª instância bastou-se com a não impugnação da deliberação da assembleia de condóminos para que não tenha surgido qualquer indemnização na esfera jurídica da administradora de condomínio, enquanto o Tribunal da Relação exigiu justa causa e considerou que a matéria de facto dada como provada pela sentença integrava este conceito indeterminado.
Mas não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme impeditivo do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que a sentença e o acórdão apresentem fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-2016, proc. n.º 551/13.7TVPRT.P1.S1).
A lei exige para considerar quebrada a dupla conformidade que essa diferença de fundamentação seja essencial, isto é, que se reporte a institutos jurídicos distintos ou a doutrinas inovatórias. Ora, no caso concreto, não estão em causa institutos jurídicos autónomos, nem normas ou interpretações normativas totalmente diversas. O que sucedeu foi que o acórdão recorrido desenvolveu, em termos doutrinários, a questão da exoneração da administração de condomínio, elencando várias hipóteses de solução e caminhos argumentativos distintos, enquanto a sentença, porque analisou de forma mais sumária a questão doutrinal, prescindiu de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa, a qual, contudo, como afirmou o acórdão recorrido, resultava da matéria de facto dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância.
A diferença de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido não é essencial, se o acórdão recorrido decidiu negar a indemnização à autora, por ter entendido que da matéria de facto decorre que houve justa causa de exoneração da administradora de condomínio, nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, e a sentença, prescindindo de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa (mas tendo fixado os factos integradores do conceito de justa causa), entendeu, com base no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, que a exoneração exercida através de deliberação da assembleia geral de condóminos, desde que não impugnada, não faz nascer na esfera jurídica da autora o direito de indemnização.
6.7. Assim, não pode afirmar-se que estamos perante um acórdão da Relação que «(…)se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância» (cfr. Acórdão 28-05-2015, proc. n.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1).
A esta luz, conclui-se que as diferenças assinaladas entre os fundamentos aduzidos pelas instâncias não se consideram essenciais. Não se justifica, pois, a quebra da dupla conformidade.
7. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:
I – O aditamento de um ponto à factualidade provada, que não teve reflexo na decisão final, com o objetivo de explicitar o conteúdo de um documento junto aos autos que não foi impugnado, não é apto a descaraterizar a dupla conformidade.
II – Não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme impeditivo do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que a sentença e o acórdão apresentem fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial.
III – A diferença de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido não é essencial, se o acórdão recorrido decidiu negar a indemnização à autora, por ter entendido que da matéria de facto decorre que houve justa causa de exoneração da administradora de condomínio, nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, e a sentença, prescindindo de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa (mas tendo fixado os factos integradores do conceito de justa causa), entendeu, com base no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, que a exoneração exercida através de deliberação da assembleia geral de condóminos, desde que não impugnada, não faz nascer na esfera jurídica da autora o direito de indemnização.
IV – Para apreender o sentido da fundamentação, é necessário proceder a uma interpretação dos fundamentos da sentença e do acórdão recorrido.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e confirmar o despacho reclamado.
Custas pela reclamante.
Lisboa, 19 de dezembro de 2023
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Jorge Leal (1.º Adjunto)
Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto)
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